O TEXTO DA OBRA DE ARTE :
MEMÓRIA e RETRATO:
FACE e INTERFACE do PRIMEIRO SUJEITO «MODERN0»
Hans Belting
BELTING, Hans «Memória e retrato : face e
interface do primeiro sujeito moderno» in RECHT, Roland .Le texte de l´œuvre d´art.: la description. Strasbourg/
Colmar: Presse Universitaire/Musée d´Unterlinden, 1998 pp. 171-182 -
A
respeito de um célebre retrato flamengo de Jan van Eyck que se encontra em
Londres (fig.01), podemos ler a data de 1432
pintada sobre toda a largura inferior do quadro. O retrato foi feito
provavelmente em Bruges onde Jan tinha se tornado pintor da corte dos duques de
Borgonha. Mas não sabemos quem era o personagem, esse homem jovem de forte
ossatura e expressão sonhadora. Ela não podia ser da alta categoria pois não
dispomos de nenhum índice. Seu nome estava escrito provavelmente na moldura de
madeira que está perdido. Panofsky elaborou uma teoria interessante ao redor do
nome «Timóteo» escrita em letras brancas
sobre a pedra pintada e identificou o personagem como sendo Gilles Binchois, o
músico da corte. Mas isso permaneceu como uma hipótese. É porque, chamo a vossa
atenção mais sobre as grandes letras que parecem antigas, tão antigas como a
pedra da qual a fissura corta em dois as palavras gravadas profundamente. Pode-se ler «LEAL
SOUVINIR[1]»,
o que significa, segundo o uso do século XV, ou um bem legal ou uma lembrança
de lealdade, ou as duas ao mesmo tempo.
Fig. 01 – VAN EYCK, Jan (1390 -1441) -_Léal_Souvenir_- c. 1432 - Óleo
sobre carvalho - 33.3 X18.9 cm - Londres-
National_Gallery,_
A memória
foi tratada aqui segundo dois médiuns: de uma parte existe sobre a pedra
esculpida a maneira antiga e de outra parte a aparência pintada de uma
personagem com os meios os mais recentes da qual se dispunha na época: um
retrato moderno no momento mesmo de sua invenção. O personagem representado,
parece, pertencer a uma outra época do que aquela da pedra usada na borda diante
do corpo com aparência viva. Agora o retrato pintado, tratado com uma
modernidade ainda medieval, sucede as inscrições funerárias da Antiguidade.
Eles pertencem à época que Huizinga, num célebre livro, denomina de «o outono
da Idade Média» .
O francês era a língua usada na corte da
Borgonha onde esse personagem pode ter vivido entre os funcionários não
aristocráticos da corte da qual fazia parte o próprio pintor. Mas existe também
o documento escrito dobrado na mão direita do homem. Poderia tratar-se de uma
carta, mais provavelmente de um documento jurídico, passado entre o modelo e o
pintor. Isso concordaria com as palavras da inscrição.
Na parte inferior da obra, uma inscrição que
nos dá informações sobre a data e o pintor, começa com a palavra actum no lugar de factum ou perfectum. Esse
termo pertence à linguagem jurídica que concluiria por uma autenticação do
mesmo gênero (a linha de subscrição). Em resumo, a memória nesse caso está
expressa por um ato jurídico do qual o conteúdo
era a própria personagem.
Habitualmente interroga-se o objeto da memória. Isso era igualmente o
caso na época na qual a pintura foi feita. Mas, aqui, o objeto é a própria
personagem jurídica. O pintor, como um notário, testemunha a existência do
jovem homem que deveria sobreviver graças ao seu retrato : é o «Leal Souvenir».
A disposição da cena, pelo artista, revela o
duplo sentido da memória na sua dupla função de renascimento e de homenagem
póstuma. Pode-se perguntar se Van Eyck pintou aqui um personagem vivo ou
falecido. A pedra tumular e a palavra
«memória» contradizem a impressão de vida que se desprende do olhar vivo do
homem jovem. Contudo pode se tratar de uma contradição entre dois médiuns: o da
morte e da pedra antiga, e a da pintura «ao vivo», segundo a expressão da
época, uma pintura surpreendendo a vida do personagem e com esse meio
ultrapassando o tempo que deixou traços tão vivos sobre a pedra. Para resumir, a memória é nova vida depois da
vida, ou melhor uma presença na ausência da personagem da qual nos lembramos.
Não é possível esquecer o papel do pintor –
notário que, não só preserva o modelo para a memória, mas procurando uma
memória de um tipo complementar. Sua arte
sendo digna de memória, em si mesma e garantindo sua própria memória. Isso é
confirmado por uma invenção surpreendente de Petrus Christus que sucedeu Jan
van Eyck em Bruges. No seu retrato de um monge cartuxo (fig.02),,
ele escreveu originalmente o nome do modelo sobre a moldura de madeira, hoje
perdida, enquanto que escreveu seu próprio nome para eternidade, como parece,
sobre a imitação de uma pedra na parte inferior da pintura. E ali está essa
mosca extraordinária pousada sobre o nome do pintor. Ela introduz o sopro do
tempo que passa e assim identificada, por oposição, à pedra como símbolo da
eternidade. A mosca irá levantar vôo, como se sabe, enquanto a pedra ficará irá
para sempre, ainda que selada pela marca do tempo. Nós sabemos que não é nem
pedra, nem mosca, mas simplesmente pintura. As metáforas são dadas para
compreender o que vemos. Lembramo-nos dos famosos versos de Horácio «Aere peremius» e assim exigir
interrogar-nos sobre o retrato, como instrumento destinado ao exercício da
memória, retrato assinado pelo pintor e realizado devido a sua arte verista.
Fig. 02 - CHRISTUS Petrus (1425-1476)
- MONGE CARTUXO . c. 1446 - Tempera e óleo 29.2 x 20 cm.
New
York – Metropolitan Museun of Art, -
A
pintura de cavalete, que era então um médium tão novo como a televisão e o vídeo em nossa
época, deveria produzir finalmente temas, como as narrações, paisagens e
naturezas mortas. Mas eu gostaria de insistir sobre o retrato que era uma das
primeiras funções desse novo médium: não mais o retrato de um santo ou de
príncipe, mas o de uma pessoa ordinária, que não era necessário venerar, e da
qual só era necessário lembra-se. O sujeito humano recentemente definido exigia
um tipo de memória privada opondo-se à memória pública, e uma memória laica
opondo-se à memória religiosa. Pode-se perguntar o que a invenção do retrato
independente significava para o médium e qual era seu objetivo para a nova, a
primeira definição do sujeito moderno?
Sobre o painel conhecido pelo nome de «Homem
Gordo» pintado por Robert Campin (fig.03),
não há nem gesto de oração nem objeto de doação. Existe somente um corpo ou aparência de um corpo. Mas o retrato
enquadrado possui um corpo próprio ?: ele poderia ser deslocado para novos
ambientes e assim reproduzir a mobilidade do próprio corpo real. Com o seu
rosto gordo e pesado, esse homem olha para fora do quadro, privilégio que
antigamente era reservado só aos santos. Contudo não é adorado, mas é ao menos
lembrado, a memória é a única razão para olhar um tal quadro, memória privada
da família e de seus descendentes. Existem duas cópias desse quadro sendo os
dois contemporâneos e idênticos na aparência. Ele podiam servir à família de
Robert Masmines, pois era dele que se tratava : de novo um funcionário oficial
da corte, sem origem nobre, assim como
van Eyck.
Fig. 03 - CAMPIN Robert (1375-1444) retrato de Robert de
MASMINES - antes de 1430- óleo sobre madeira - 35 x 24 cm- Madrid- Museu Thyssen Bornemisza
Falamos aqui do retrato silencioso que não
fala de gestos de devoção ou do gesto do doador mas com a ajuda da virtude do
olhar e dos movimentos silenciosos que deslizam docemente sobre o rosto. É uma
linguagem silenciosa que devemos apreender a compreender pois é indicação quanto ao seu fim e ao seu
conteúdo. O velho cardeal Albergatti ( não vejo nenhuma razão para mudar a sua
identificação) (fig.04), combina o realismo
da fisionomia com o cônego Georges van
de Pæle , mas nos deixa na incerteza quanto a saber se está mergulhado numa
visão. O suporte pintado oferece um
substituto ao corpo vivo e representa uma personagem para fins mnemônicos : uma
memória ao mesmo tempo pública e privada, laica e religiosa. Não sabemos,
através do quadro se era uma encomenda feito pelo modelo ou um presente feito a
ele.
Fig. 04 - VAN EYK, Jan (1390 -1441) –Retrato do dito CARDEAL
NICOLA ALBERGI, 1430 - óleo sobre
madeira 34.1 x 27.3 VIENA
Kusnthistoriches Museum
Existe também o caso de Jan de Leeuw (João Leão), um joalheiro de Bruges com a idade de trinta
e cinco anos, que é representado por Jan van Eyck olhando-nos e mostrando um anel de ouro, prova visual de
sua arte (fig.05),. A inscrição sobre o
quadro, em todos os pontos semelhante à gravura sobre metal, ligado o nascimento do corpo do joalheiro no
passado a seu retrato no presente. Era o dia de Santa Úrsula em 1401 em que Jan
veio para a luz do mundo pela primeira
vez. «Agora Jan van Eyck fez meu retrato (gheconterfeit).
Isso é evidente (wel blijct) desde
que ele começou (wan eert began)», quer dizer o quadro. A imagem recria o corpo
que originalmente foi criado por Deus. O nascimento da obra do pintor (noção
completamente inabitual que contradiz a noção familiar de acabamento da obra) é
um segundo nascimento do modelo que assim, começa na imagem a sua vida depois
da morte.
Fig. 05
- VAN EYK, Jan (1390 -1441) – Retrato de
JAN de LEEUW c.1436 -óleo sobre madera
24.6 x 19.2 cm. -VIENA Kusnthistoriches Museum
O
pintor logo não resistirá mais a tentação de recriar seu próprio corpo. Jan van
Eyck (fig.06), empreende o primeiro
auto-retrato da história da arte no
verdadeiro sentido do termo. Esse termo hoje em dia é muito familiar para
revelar o acontecimento inovador que
acontece nesse quadro. Desta vez o
pintor se observa a si mesmo, para produzir sua própria aparência. Usando um
espelho verdadeiro, ele inventou um reflexo pintado de sue corpo. Sobre o
quadro, lemos : « Jan van Eyck fez-me no ano de 1433». Não há o nome do modelo
pois o modelo e o artista são a única e mesma pessoa. «Fez-me», é o quadro que
fala como um segundo corpo e ele possui o seu próprio corpo. Ele parece dizer «
ad imaginem hominis» como o homem foi
criado « ad imaginem Dei». Da mesma
maneira que o corpo foi criado por Deus, esse quadro foi criado pelo próprio
homem.
Fig. 06 – VAN EYCK, Jan (1390 -1441) Retrato de um Homem com
Turbante ( ¿ autorretrato) - 1433 - óleo sobre madeira - 25.8 x 18.9 cm (sem
moldura) Londres -National Gallery
O
corpo, aqui em baixo, é mortal enquanto
que a imagem, esperava-se, seria imortal, tão imortal como a alma, ainda que
por razões diferentes. Agora a silhueta de perfil volta-se e nos olha. Ela
tomou posse de um corpo capaz de ocupar
o espaço. O espaço é escuro e ilimitado
na profundidade. E existe a luz : uma
luz invisível mas munida do poder novamente descoberto de tornar os corpos
visíveis, esse mesmo poder que a pintura possui. A luz liga o espaço diante do
quadro no qual nós nos encontramos, ao espaço escuro que está atrás da moldura
do quadro, quer dizer os dois lugares onde os corpos podem existir : nosso
corpo no lado externo e o corpo pintado no interior. Paradoxalmente, a luz é
materializada unicamente somente quando ela toca um corpo sólido e descreve as
superfícies do corpo. A luz e a obscuridade, colocando em cena o corpo e o
espaço são os signos do mundo físico no qual o homem vive. São fenômenos óticos. Mas nessa caso, existe
outra coisa que somente a visão. A memória
é então uma aptidão visual pois nossos olhos reconhecem do que o espírito está se
recordando. Tanto quanto ler, ver é um exercício de memória. Estranhamente, o
quadro nos chama para a lembrança de um corpo.
Não um corpo nem um corpo em geral, mas o corpo particular de uma pessoa
com um nome e uma idade. A obsessão de datar seus retratos revela a intenção
dos pintores em descrever uma vida
singular. A existência individual reflete-se num retrato individual. O
objetivo da memória inclui aquela da singularidade de um corpo que, na medida na qual o corpo não pode sobrevive,
sobrevive num duplo, o duplo do quadro.
O que é dado na sociedade ocidental, nesse
momento é aceito como alguma coisa que limita o nosso olho, mas ao mesmo tempo
permite esclarecer.
O contingência prevalece sobre a
transcendência. A transcendência está sempre lá mas ela não é mais acessível
para a representação nem para as palavras nem para a pintura . A cortina esconde o que se esconde
do outro lado. Do lado de cá da cortina, existe a superfície do visível que,
segundo as normas é também o mortal. O
«trompe l´œil» procede do grande jogo, maravilhosamente ilusório da pintura,
mas também possui uma qualidade moral :
seja qual for a coisa vista, ela nos engana da mesma forma. Assim a pintura não é apenas uma ilusão, mas
representa também a ilusão ( em relação com o outro mundo que, de toda maneira
está fechado ao nosso olhar). O retrato nasce ao mesmo tempo em que é
representado pela primeira vez o esqueleto.
A morte está limitada pela mesma contingência que o corpo. A morte como
a experimentamos em nosso mundo. A dança macabra, o túmulo com o morto hirto e
o retrato vivo, são invenções contemporâneas. Eles testemunham a lei da
superfície que torna-se tão impenetrável como a pintura. Mesmo quando a pintura
representa o espaço, ela o faz utilizando um médium que é a encarnação da
própria superfície : o quadro.
A mim parece que espaço vivo é o oposto da
superfície fechada. A superfície não pertence só ao verdadeiro médium pictural
que representa o espaço, ela indica também que existe um outro tipo de espaço.
( e espaço desconhecido de um mundo
transcendente) que se esconde atrás da
percepção da superfície. É uma superfície simbólica sobre a qual
projetamos nossa visão empírica assim como o nosso saber. O «trompe l´œil»,
enquanto invenção da pintura do século XV, cria relevo na superfície
plana. Ele não penetra nessa superfície, mas faz jorrar em nossa direção e projeta em direção ao nosso próprio espaço tudo
aquilo que vemos; mesmo a face humana é uma superfície fechada, uma máscara
física e impenetrável consequentemente, atrás da qual desenha-se a vida da
alma. A face, seguramente, é penetrada e animada pela expressão da alma.
Contudo, é um domínio do corpo e da mortalidade, guardada viva e preservada
pela pintura. É também uma interface pela qual uma pessoa se dirige a um
espectador e pede para ser lembrada. Trata-se
de uma espécie de relação interpessoal
cada vez que esta relação é interrompida pela ausência ou pela morte, a
ausência definitiva.
A memória veiculada por uma imagem pintada,
refere-se por sua vez a uma imagem natural já presente no próprio corpo .
Nicolau Oresme, na tradução de a Oiconomy
de Aristóteles, fala da imagem corporal : «a natureza não nos dá uma vida
permanente». É por que em compensação, ela «perpetua a nossa semelhança em
nossas crianças. A criança é uma imagem viva de seus pais. É isso que Georges
Chastellain pensa quando ele descreve o duque de Borgonha, o protetor da Jan
van Eyck. Ele possuía, diz ele « a face dos seus pais». É o resultado da
genealogia e a genealogia sendo o fundamento da casa reinante. O que também
pode se aplicado a uma família privada. O novo interesse pelo corpo transforma
igualmente o retrato dos príncipes que perde seu idealismo longínquo e
abstrato. Os cronistas descrevem cada vez mais os príncipes como «seres humanos
como vocês e eu». Não é tanto uma desmitologização do que uma nova concepção da
natureza humana que não exclui mais os personagens de alta hierarquia. O
retrato do príncipe, consequentemente, adota o realismo enquanto traço
particular de um retrato : se há realismo esse não pode ser do que o
realismo do ser humano enquanto tal.
Mesmo escritores como Chastellain tendem a «perpetuar a composição do
corpo e o rosto vivo» do duque. O que os
próprios pintores contemporâneos começaram. Com a pintura de cavalete enquanto
médium da memória, a memória adquire também a qualidade de uma definição antropológica
: a definição desse ser único, que é o homem (fig.07):
Fig. 07 -
VAN EYK, Jan (1390
-1441) - Retrato de BAUDOUIN de LANOY óleo sobre madeira 26 x 20 cm Berlin Staatliche Museum
Preusische Kulturbrstz
Existe
com efeito o que eu denomino de antropologia
pintada. Compete-me abordar aqui o
problema do dualismo inerente à natureza humana, o dualismo do corpo e da alma
que tinha sido provado pela teologia e o humanismo, muito antes que a psicologia moderna, com o seu próprio
dogmatismo se tivesse imposto. A relação da psiquê com o corpo (que, mesmo para
nós hoje em dia permanece um mistério) é uma questão de fora e de dentro, do
visível e do invisível. Ela faz nascer o
problema de uma nova linguagem visual quando os pintores, de repente,
reproduzem com sucesso apenas o corpo.
Foi porque eles foram forçados a usar as metáforas e os signos para
sugerir o que eles não podiam descrever. Eles concentraram-se assim sobre o
olho, pois o olho havia sido percebido desde os tempo imemoriais como «a janela
da alma». Mesmo Chastellain, na sua descrição do duque Felipe toca nessa questão e declara que «o olhar revelava o interior do
coração». O olho sendo o único vínculo do
interior e de fora e que, no
seu conjunto, formam a organização
humana.
Concede-se ao olho, na pintura flamenga
primitiva, uma importância surpreendente
e é visto, geralmente, sob um ângulo diferente da cabeça, o que indica que tem
uma vida própria. Em geral, ele tratado como um espelho natural porque o reflexo da luz aparece antes sobre sua
superfície convexa. Ademais, a luz penetra igualmente o olhar e assim inaugura
o milagre do ver. O olho representa o paradoxo de um espelho que enxerga,
passivo e ativo, exterior e interior ao mesmo tempo. A ambigüidade do visível e
do invisível esta presente maravilhosamente na forma do olho. Sobre sua
superfície visível, vemos o reflexo de tudo o que cerca a pessoa, quer dizer o mundo material. Mas no centro
desse espelho que não pode ver, abre-se o buraco negro do olhar que recebe uma
imagem, mas não só uma imagem. Para nossos pintores flamengos e seus clientes,
isso era normal mas não o suficiente. A alma achava-se num outro mundo. Ela
tinha necessidade de olhar para o interior e assim encaminhar-se ao seu
verdadeiro destino . Então uma nova ambigüidade aparece, uma ambigüidade
simbolizando o dualismo inerente à natureza humana. A dupla janela que se
reflete algumas vezes nos olhos. Toma o sentido escondido de uma bela metáfora
: a janela interior e a janela exterior. Cada vez que a pessoa representada
está num interior de uma casa, então a janela se reflete nos seus olhos pois a
luz entra pela janela. Janela e luz tornam-se sinônimos e é lá que começa a metáfora do olha como
janela da alma.
A transformação da superfície pintada do
quadro em uma superfície de espelho é sugerida pela janela refletida nos
espelhos pintados nos quadros, pois a janela não só recebe a luz mas também
separa o espaço no qual nos encontramos,
de um outro espaço no qual não estamos. Assim oferecem-nos uma segunda
metáfora e á a janela simbólica. Ela
representa um mundo para além do empirismo, um mundo que só a alma pode
imaginar. O espectador do século XV conhecia, esse outro mundo, pela fé cristã
e ele sabia também que a memória, no seu sentido mais profundo, era uma
capacidade inata da alma que se lembrava de sua casa celeste. O mundo era o
domínio da percepção, o outro mundo era o domínio da imaginação. A janela não
revela o que está atrás dele, mas sublinha que existe alguma coisa para além da
superfície empírica que não se abre para a imaginação a não ser em certos casos
raros, aos santos que tinham uma cesso à uma visão celeste.
Contudo, uma tal janela incluía também a
experiência da arquitetura européia com seus muros de pedra maciça. Os muros de
suas casas encerravam os habitantes, da mesma forma como eles se sentiam
encerrados nos seus corpos, em vez de se fundir na natureza aberta (como é o
caso da cultura asiática). O quadros, desde que foram pendurados nas paredes da
casas (com ainda o são) constituem um tipo particular de janela.. Eles faziam o
papel de janelas artificiais ou pintadas (trompe l´œil) que ofereciam uma vista
predominantemente dirigida. Nesse sentido, tais quadros eram um médium como a
televisão (a primeira desse tipo) porque
ele simulavam uma vista, não somente do interior para o mundo exterior,
mas também uma vista do próximo para o longínquo, uma «tele-visãos». O outro
mundo estava mesmo mais afastado e por conseguinte, ele representava ainda mais
radicalmente um semelhante da «tele-visão» (a transcendência ocidental ou
metafísica sempre exigiu um tal limite, como janela é o que definiu a diferença
entre a visão do espectador e sua posição fixa).
O novo quadro flamengo respondia a uma função
mnemônica particular quando era tratado com retrato. A memória, nesse caso,
devia ser a da personagem que merecia a memória. Não era mais suficiente
lembrar da alma que tinha deixado o corpo e tinha necessidade da reza dos vivos
para sua salvação. A memória atestava também a identidade de uma pessoa, na
medida na qual ela havia vivido num
contexto social e num corpo individual. Enquanto tal, o quadro só, com seu
corpo enquadrado de madeira, cumpria a nova tarefa de representação : não somente a aparência de
maneira geral, mas a representação como discurso filosófico e antropológica. O
retrato não representava somente um corpo singular mas valorizava uma vida
singular para além de todas as distinções sociais. Chegava-se assim a uma
equação «um sobre um» entre a pessoa
representada e o quadro representando-a.
Assim, o retrato tinha o papel de um espelho eterno que contrariamente a
um espelho ordinário, guardava a sua imagem, para sempre e mesmo após a morte do corpo. Mesmo o quadro devocional (domínio onde este trabalho de
representação havia começado) representava a pessoa, menos pela sua aparência
do que pela sua visão e seus sonhos.
Fig.
08 – WEYDEN, Rogier van der - (
1400-1464) - Retrato de
Francesco d’ESTES – c. 1460 –
Têmpera e óleo sobre madeira - 29.8 x
20.3 cm - New York – Metropolitan Museun of Art, - Friedsan Collection
Cada
quadro, sem consideração de gênero nem objetivo, adotava o que denominamos
habitualmente a perspectiva mas que é de fato, a visão única, a visão mono cêntrica do mundo a partir do ponto de vista de um corpo único e consequente, dependente do comportamento de
uma pessoa única: uma visão que dirigida que sublinha o direito de uma pessoa
que olha. O quadro, como vimos, que age
tanto como um espelho, como uma janela, não é outra coisa do que uma
superfície plana que nos lembra um antepassado importante, o escudo com as
armas, Quando eu digo antepassado, utilizo esse termo num sentido concreto. O
escudo apareceu antes, o quadro em segundo lugar e era pintado muitas vezes
pelos mesmos artistas. Estamos aí em presença de uma coincidência que foi
totalmente negligenciada no debate sobre a origem do quadro na cultura europeia. É inútil lembrar o escudo enquanto era carregado pelos cavaleiros
durante as batalhas e o torneios, era tanto uma arma de defesa como um meio de
auto representação. No primeiro caso, ele protegia seu proprietário enquanto
pessoa protegendo-se atrás de sua superfície. No outro caso ele identificava
seu proprietário graças à heráldica enquanto seu rosto permanecia invisível sob
o elmo fechado. Quando o inimigo, ou o público de um torneio, via as cores (
permitia descrever a heráldica), essa cores identificavam imediatamente seu
proprietário (como se tratasse do rosto)
FACE
e REVERSO
Fig. 09 - WEYDEN Rogier van der - ( 1400-1464) Verso da obra
FRANCISCO d’ESTES – c. 1460 –
Têmpera e óleo sobre madeira - 29.8 x
20.3 cm New York – Metropolitan Museun of Art, - Friedsan Collection
É pois de primordial importância que as fontes
escritas da época usassem indiferentemente o termo quadro para o escudo
como brasão heráldico e para o quadro
pintado (figuras
08 - 09) . A mesma coisa se
aplica ao termo escudo (SCHILD)
flamengo e holandês. A palavra schilder
designa ao mesmo tempo aquele que fabrica o escudo e o pintor. Schilderij significa ao mesmo tempo
pintor de brasões e pintor de quadros, uma dupla tarefa muitas vezes confiada
aos pintores da corte, segundo as fontes contemporâneas. Hoje em dia, em
alemão, distingue-se Wappen de Waffen, quer dizer os brasões das armas reais, mas a
terminologia era, no passado, menos nítidas ( e generalizante no intenção). O
mesmo médium ( uma prancha em madeira pintada) semelhante em aparência e
diferente por sua função no caso do retrato revela uma equação simbólica que merece
que se preste mais atenção.
Os brasões prevaleciam no uso aristocrático
onde eles representavam uma identidade de outro tipo : a noção trans pessoal de
potência de territorial, e como tal qualificava uma família ou dinastia. Muitas
vezes, as crônicas esquecem o nome de um senhor feudal e o identificam antes como o senhor de um dado
território. O que os brasões tinham
representados para essa classe social foi retomado pelo retrato por um outra
classe social, a dos cidadãos comuns. Os dois usos se confundiram muito
rapidamente, mas sua origem permanece
claramente distinto. O fato a que a aristocracia tinha desenvolvido o retrato
dinástico mais cedo não é uma contradição. Ela tinha necessidade da burguesia
que acabou usando o retrato como marca distintiva. Esso, no entanto, não se
pode fazer sem a integração de única diferença social. Ficando estabelecido que as duas classes
sociais antagônicas não permitiam nenhuma integração social, a solução era a integração antropológica enquanto distinção meta-social do ser humano, nascido
da carne e morrendo na carne.
Parece perturbador descobrir o quadro-retrato
habitual como parente próximo desta arma antiga e de seus brasões. Mas essa
relação oferece uma chave preciosa para
a releitura da significação do retrato primitivo, como sendo um símbolo e uma
prova do conceito recentemente
desenvolvido da pessoa humana. A representação, sem nenhuma dívida, veicula
sempre uma noção de defesa e de ataque. Da mesma forma o escudo primitivo nas
cores dos brasões, era não só uma arma mas também uma interface, aparência
pintada sugeria também uma interface, ainda que não tendo nenhuma função no
campo de batalha. Esta aparência pintada veicula a noção de pessoas em termo
legal, o que era a situação primeira da sociedade burguesa. Sob o plano da
memória leiga ou das reivindicações do modelo deveriam tornar-se manifestas (
herança, propriedade, administração, sucessão), o retrato introduzia a
interface como opondo a face natural,
criando assim a presença indireta pela viés de um de um suporte da presença, o
médium pintado. Mas o termo «presença» não é suficiente para caraterizar a
verdadeira mensagem desta representação. A representação incluindo um
objetivo em representar alguém que desejava
( ou tinha necessidade de ) se expressar : uma pessoa quando defender seus
direitos, lembrar a cada espectador suas reivindicações e resistir a aqueles que queriam
contestá-los. É preciso lembrar-se das reivindicações inerentes a cada
representação na medida em que elas serviam para promover una primeira
definição do ser humano ( enquanto cidadão ou em qualquer outro título) antes
mesmo que uma definição geral do sujeito humano (em termos diferentes que o
religiosos) não nasce. O rosto em
pintura, por conseguinte, fazia o papel de interface, quer dizer uma superfície
permitindo a troca de uma pessoa ausente
por uma pessoa presente.
Essa descrição é também válida no domínio
religioso se o retrato ( e também a imagem do doador) como uma interface diante
do ser utilizado por Deus ( e a quem ele responderia). O domínio religioso era
tão estruturado por reivindicações,
direitos, e de deveres como o domínio laica : era-se membro da igreja ( todo o
mundo o era) de uma cidade, de uma corporação, de uma família. Havia uma
espécie de relação contratual entre o crente e seu criador, que dizer também
uma relação interpessoal. O rosto em
pintura, portanto onde quer que se expusesse, chamava a atenção : atenção do
criador celeste (seu criador) como da família, ou da corporação supondo lembrar-se do defunto nas suas
preces. Mesmo no domínio religioso, a
interface pintada tinha um papel de um médium artístico e artificial
para a presença e a memória.
O
retrato, recentemente criado, delimitava uma existência secular que não
dependia da hierarquia, nem da potência, mas de uma vida reconhecida pela
autoridades : uma vida que os pintores, da mesma forma que os notários e os
oficiais municipais pelos seus escritos, legitimavam (tornando oficial) pela
aparência ( propriedade do indivíduo)
pelas datas do nascimento e da emissão do documento; não é por acaso se
o nome legal só completava a função do retrato legal. Ao lado do discurso dos teólogos que definiam o
sujeito como uma criação à imagem do criador, competia à vida municipal
categorizar o sujeito enquanto membro, quer dizer em termos descritivos de seu
registro. Assim o retrato era não só definido pela aparência fisionômica ( que
para ser completo esperava a vinda de
descendentes como herdeiros dessa aparência) Mas também pelo mesmo fato da
reprodução que por esse fato autenticava
a existência daquele era representado ( como alguém que possuía uma imagem de
si mesmo). O retrato no entanto não deveria terminar nos arquivos silenciosos
da memória mas necessitava da interação de alguém mais : numa tal interação, o
rosto em pintura nascia graças a uma
interface técnica, a saber um médium usado de cada lado, como se o sujeito
representado estivesse presente em pessoa. O retrato europeu, como procuramos
demonstrar, foi inventado em condições específicas e locais que ensaiamos
reconstruir.
Em termos gerais, uma teoria do quadro
primitivo, enquanto entidade delimitada, independente assim como móvel, deve
ser inscrito na história da primeira noção moderna de sujeito sem ter em conta o fato que se
tratava do retrato de uma pessoa ou de um testemunho de uma visão centrada do
mundo. É necessário, no início, considerar no interior do quadro da história do ícone que abandona seu
uso cultural e se transforma em ícone da pessoa comum.
Em seguida é necessário considerá-lo no
interior da história da arquitetura
privada europeia que comunicava
através das janelas com a natureza, arquitetura que por sua vez, torna-se um
idioma da vida urbana ( mas também metáfora de quem estivesse incluído no corpo como o corpo incluído nos muros de
uma casa) : considerar nessa perspectiva, o quadro não é mais do que uma janela
pintada (para ver à distância o mundo e a natureza) ou em outros exemplos, um
espelho para a auto-reflexão. A teoria do quadro, deve finalmente reconhecer o retrato como sucedâneo do escudo defensivo
na medida em que os dois manipulam a representação de uma forma defensiva ou
agressiva e tornando não somente uma pessoa mas também uma reivindicação
visualmente certa.
Permitam-me
concluir com uma história que ilustra meu propósito sobre o quadro e o escudo
e permitem-nos ter acesso ao mundo perdido da cultura feudal
no meio de cidades nascentes.. Essa anedota encontra-se nas crônicas de Olivier
de Marche que, em 1445, descreve a assembleia da Ordem do Velocino de Ouro
enquanto testemunho ocular. Durante essa assembleia teve lugar um missa em memória na igreja Saint-Bavon de Gand, o mesmo santuário que abriga o retábulo
dos irmãos van Eyck. Os cavaleiros reuniram-se no interior da igreja diante «
de grandes quadros ricamente pintados» que traziam os seus brasões, seus nomes
e suas divisas. Algumas cadeiras ficaram vazias, e no caso, o escudo heráldico
foi colocado contra cortinado negro. O cronista perguntando o que significava
isso e lhe responderam que eram os escudos dos que tinham morrido desde a
última assembléia. A cadeira do rei de Aragon estava com um rico pálio com
tecido de ouro como se ele estivesse presente em pessoa. A cadeira do duque de
Borgonha (que era o soberano da ordem) distinguia-se por um quadro cujo brasão
era mais importante do que o resto da assembleia. Sobre o muro, na altura, no
exterior do coro, havia escudos dos que tinham morrido bem antes da última Assembleia da Ordem; eles estavam suspensos de tal forma que todos os podiam
ver e reconhecer. Durante a celebração, chamava-se cada cavaleiro pelo seu nome
e pedia-se que trouxesse uma vela acesa sobre o altar. Cada ausente era
representado por um procurador da Ordem. Tal é a história se encontra nos
textos de Olivier de la Marche. Pode-se juntar
aquilo que a ordem representava para os cavaleiros, a corporação e a
família o eram para o cidadão particular. Os dias de comemoração e de enterro,
seu escudo contudo não tinha, a mesma aparências. Ele era o retrato pintado, a
encarnação da própria memória pessoal.
O texto traduzido aqui é o de uma conferência do autor
em Colmar em 1997 no quadro das Jornadas
de Estudos sobre a Descrição. Ele não contém contudo resultados
definitivos, mas se apresenta mais como
uma tentativa para prolongar as ideias contidas no livro obre a Invenção do
Quadro. O primeiro século da pintura
flamenga, Munique, 1994, publicado
pelo autor em colaboração com Christiane Kruse.
Assim a presente contribuição deve ser compreendida como um «work in progress». Ele constitui à 1ª
etapa de um trabalho sobre brasões e o retrato, levado no quadro de um projeto
de antropologia dos médiuns figurados, na Escola Superior de Karlsruhe. No que
concerne às referências bibliográficas,
remete-se o leitor ao livro mencionado acima
Tradução (do alemão ) de
Marie Schirer.
Tradução do francês para o português de
Círio SIMON - Seminário “Modernidade: arte e arquitetura: questões
teórico-metodológicas” Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Bastos KERN- 01 de maio de.2000 FFCH
- PUC-RS
FONTES NUMÉRICAS DIGITAIS.
CAMPIN
Robert (1375-1444) Retrato de Robert de MASMINES - antes de
1430- óleo sobre madeira - 35 x 24 cm- Madrid- Museu Thyssen
Bornemisza
CHRISTUS, Petrus
(1425-1476) - Monge Cartuxo - 1446
Tempera e óleo 29.2 x 20. Cm NY Metropolitan
VAN EYK Jan (1390 -1441)
LEAL SOUVENIR
Homem com
turbante
BAUDOUIN de LANOY
Jan de LEEUN
Cardeal
Nocla ALBERGATI
WEYDEN Rogier van der ( 1400-1464) Francesco d’ESTE
FACE e REVERSO
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apoio do processo continuado de ensino-aprendizagem
Não há pretensão de lucro ou de apoio
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em língua nacional brasileira e respeita a formação histórica deste idioma.
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