terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

150 – LOGÍSTICA em ESTUDOS de ARTE memória e retrato


O TEXTO DA OBRA DE ARTE :

MEMÓRIA e RETRATO:

FACE e INTERFACE do PRIMEIRO SUJEITO «MODERN0»

Hans Belting

BELTING, Hans «Memória e retrato : face e interface do primeiro sujeito moderno» in RECHT, Roland .Le texte de l´œuvre  d´art.: la description. Strasbourg/ Colmar: Presse Universitaire/Musée d´Unterlinden, 1998 pp. 171-182 -


A respeito de um célebre retrato flamengo de Jan van Eyck que se encontra em Londres (fig.01), podemos ler a data de 1432 pintada sobre toda a largura inferior do quadro. O retrato foi feito provavelmente em Bruges onde Jan tinha se tornado pintor da corte dos duques de Borgonha. Mas não sabemos quem era o personagem, esse homem jovem de forte ossatura e expressão sonhadora. Ela não podia ser da alta categoria pois não dispomos de nenhum índice. Seu nome estava escrito provavelmente na moldura de madeira que está perdido. Panofsky elaborou uma teoria interessante ao redor do nome  «Timóteo» escrita em letras brancas sobre a pedra pintada e identificou o personagem como sendo Gilles Binchois, o músico da corte. Mas isso permaneceu como uma hipótese. É porque, chamo a vossa atenção mais sobre as grandes letras que parecem antigas, tão antigas como a pedra da qual a fissura corta em dois as palavras  gravadas profundamente. Pode-se ler «LEAL SOUVINIR[1]», o que significa, segundo o uso do século XV, ou um bem legal ou uma lembrança de lealdade, ou as duas ao mesmo tempo.


[1] - Souvenir = lembrança (nota do tradutor)
Fig. 01 –  VAN EYCK, Jan (1390 -1441) -_Léal_Souvenir_- c. 1432 - Óleo sobre carvalho - 33.3 X18.9 cm - Londres-  National_Gallery,_

 A memória  foi tratada aqui segundo dois médiuns: de uma parte existe sobre a pedra esculpida a maneira antiga e de outra parte a aparência pintada de uma personagem com os meios os mais recentes da qual se dispunha na época: um retrato moderno no momento mesmo de sua invenção. O personagem representado, parece, pertencer a uma outra época do que aquela da pedra usada na borda diante do corpo com aparência viva. Agora o retrato pintado, tratado com uma modernidade ainda medieval, sucede as inscrições funerárias da Antiguidade. Eles pertencem à época que Huizinga, num célebre livro, denomina de «o outono da Idade Média» .
 O francês era a língua usada na corte da Borgonha onde esse personagem pode ter vivido entre os funcionários não aristocráticos da corte da qual fazia parte o próprio pintor. Mas existe também o documento escrito dobrado na mão direita do homem. Poderia tratar-se de uma carta, mais provavelmente de um documento jurídico, passado entre o modelo e o pintor. Isso concordaria com as palavras da inscrição.
 Na parte inferior da obra, uma inscrição que nos dá informações sobre a data e o pintor, começa com a palavra actum no lugar de factum ou perfectum. Esse termo pertence à linguagem jurídica que concluiria por uma autenticação do mesmo gênero (a linha de subscrição). Em resumo, a memória nesse caso está expressa por um ato jurídico do qual o conteúdo  era a própria personagem.  Habitualmente interroga-se o objeto da memória. Isso era igualmente o caso na época na qual a pintura foi feita. Mas, aqui, o objeto é a própria personagem jurídica. O pintor, como um notário, testemunha a existência do jovem homem que deveria sobreviver graças ao seu retrato : é o «Leal Souvenir».
  A disposição da cena, pelo artista, revela o duplo sentido da memória na sua dupla função de renascimento e de homenagem póstuma. Pode-se perguntar se Van Eyck pintou aqui um personagem vivo ou falecido. A pedra tumular e a  palavra «memória» contradizem a impressão de vida que se desprende do olhar vivo do homem jovem. Contudo pode se tratar de uma contradição entre dois médiuns: o da morte e da pedra antiga, e a da pintura «ao vivo», segundo a expressão da época, uma pintura surpreendendo a vida do personagem e com esse meio ultrapassando o tempo que deixou traços tão vivos sobre a pedra. Para  resumir, a memória é nova vida depois da vida, ou melhor uma presença na ausência da personagem da qual   nos lembramos.
 Não é possível esquecer o papel do pintor – notário que, não só preserva o modelo para a memória, mas procurando uma memória de um tipo complementar. Sua arte sendo digna de memória, em si mesma e garantindo sua própria memória. Isso é confirmado por uma invenção surpreendente de Petrus Christus que sucedeu Jan van Eyck em Bruges. No seu retrato de um monge cartuxo (fig.02),, ele escreveu originalmente o nome do modelo sobre a moldura de madeira, hoje perdida, enquanto que escreveu seu próprio nome para eternidade, como parece, sobre a imitação de uma pedra na parte inferior da pintura. E ali está essa mosca extraordinária pousada sobre o nome do pintor. Ela introduz o sopro do tempo que passa e assim identificada, por oposição, à pedra como símbolo da eternidade. A mosca irá levantar vôo, como se sabe, enquanto a pedra ficará irá para sempre, ainda que selada pela marca do tempo. Nós sabemos que não é nem pedra, nem mosca, mas simplesmente pintura. As metáforas são dadas para compreender o que vemos. Lembramo-nos dos famosos versos de Horácio «Aere peremius» e assim exigir interrogar-nos sobre o retrato, como instrumento destinado ao exercício da memória, retrato assinado pelo pintor e realizado devido a sua arte verista.
Fig. 02 - CHRISTUS Petrus  (1425-1476)  - MONGE CARTUXO . c. 1446 - Tempera e óleo 29.2 x 20 cm.
New York – Metropolitan Museun of Art, -

  A pintura de cavalete, que era então um médium tão  novo como a televisão e o vídeo em nossa época, deveria produzir finalmente temas, como as narrações, paisagens e naturezas mortas. Mas eu gostaria de insistir sobre o retrato que era uma das primeiras funções desse novo médium: não mais o retrato de um santo ou de príncipe, mas o de uma pessoa ordinária, que não era necessário venerar, e da qual só era necessário lembra-se. O sujeito humano recentemente definido exigia um tipo de memória privada opondo-se à memória pública, e uma memória laica opondo-se à memória religiosa. Pode-se perguntar o que a invenção do retrato independente significava para o médium e qual era seu objetivo para a nova, a primeira definição do sujeito moderno?
 Sobre o painel conhecido pelo nome de «Homem Gordo» pintado por Robert Campin (fig.03), não há nem gesto de oração nem objeto de doação. Existe somente um corpo ou aparência de um corpo. Mas o retrato enquadrado possui um corpo próprio ?: ele poderia ser deslocado para novos ambientes e assim reproduzir a mobilidade do próprio corpo real. Com o seu rosto gordo e pesado, esse homem olha para fora do quadro, privilégio que antigamente era reservado só aos santos. Contudo não é adorado, mas é ao menos lembrado, a memória é a única razão para olhar um tal quadro, memória privada da família e de seus descendentes. Existem duas cópias desse quadro sendo os dois contemporâneos e idênticos na aparência. Ele podiam servir à família de Robert Masmines, pois era dele que se tratava : de novo um funcionário oficial da corte, sem origem nobre, assim como  van Eyck.
Fig. 03 -  CAMPIN Robert (1375-1444) retrato de Robert de MASMINES  - antes de 1430-  óleo sobre madeira  - 35 x 24 cm- Madrid- Museu Thyssen Bornemisza

  Falamos aqui do retrato silencioso que não fala de gestos de devoção ou do gesto do doador mas com a ajuda da virtude do olhar e dos movimentos silenciosos que deslizam docemente sobre o rosto. É uma linguagem silenciosa que devemos apreender a compreender pois é  indicação quanto ao seu fim e ao seu conteúdo. O velho cardeal Albergatti ( não vejo nenhuma razão para mudar a sua identificação) (fig.04), combina o realismo da fisionomia com o  cônego Georges van de Pæle , mas nos deixa na incerteza quanto a saber se está mergulhado numa visão. O  suporte pintado oferece um substituto ao corpo vivo e representa uma personagem para fins mnemônicos : uma memória ao mesmo tempo pública e privada, laica e religiosa. Não sabemos, através do quadro se era uma encomenda feito pelo modelo ou um presente feito a ele.
Fig. 04 - VAN EYK,  Jan (1390 -1441) –Retrato do dito CARDEAL NICOLA ALBERGI,  1430 - óleo sobre madeira  34.1 x 27.3 VIENA Kusnthistoriches Museum

  Existe também o caso de Jan de Leeuw (João Leão),  um joalheiro de Bruges com a idade de trinta e cinco anos, que é representado por Jan van Eyck olhando-nos e  mostrando um anel de ouro, prova visual de sua arte (fig.05),. A inscrição sobre o quadro, em todos os pontos semelhante à gravura sobre metal,  ligado o nascimento do corpo do joalheiro no passado a seu retrato no presente. Era o dia de Santa Úrsula em 1401 em que Jan veio para a luz do mundo pela  primeira vez. «Agora Jan van Eyck fez meu retrato (gheconterfeit). Isso é evidente (wel blijct) desde que ele começou (wan eert began)»,  quer dizer o quadro. A imagem recria o corpo que originalmente foi criado por Deus. O nascimento da obra do pintor (noção completamente inabitual que contradiz a noção familiar de acabamento da obra) é um segundo nascimento do modelo que assim, começa na imagem a sua vida depois da morte.
Fig. 05 - VAN EYK,  Jan (1390 -1441) – Retrato de JAN de LEEUW c.1436 -óleo sobre madera  24.6 x 19.2 cm. -VIENA Kusnthistoriches Museum

 O pintor logo não resistirá mais a tentação de recriar seu próprio corpo. Jan van Eyck (fig.06), empreende o primeiro auto-retrato  da história da arte no verdadeiro sentido do termo. Esse termo hoje em dia é muito familiar para revelar  o acontecimento inovador que acontece nesse quadro.  Desta vez o pintor se observa a si mesmo, para produzir sua própria aparência. Usando um espelho verdadeiro, ele inventou um reflexo pintado de sue corpo. Sobre o quadro, lemos : « Jan van Eyck fez-me no ano de 1433». Não há o nome do modelo pois o modelo e o artista são a única e mesma pessoa. «Fez-me», é o quadro que fala como um segundo corpo e ele possui o seu próprio corpo. Ele parece dizer « ad imaginem hominis» como o homem foi criado « ad imaginem Dei». Da mesma maneira que o corpo foi criado por Deus, esse quadro foi criado pelo próprio homem.  
Fig. 06 – VAN EYCK, Jan (1390 -1441) Retrato de um Homem com Turbante ( ¿ autorretrato) - 1433 - óleo sobre madeira - 25.8 x 18.9 cm (sem moldura) Londres -National Gallery

O corpo, aqui em baixo, é mortal  enquanto que a imagem, esperava-se, seria imortal, tão imortal como a alma, ainda que por razões diferentes. Agora a silhueta de perfil volta-se e nos olha. Ela tomou  posse de um corpo capaz de ocupar o espaço.  O espaço é escuro e ilimitado na profundidade.  E existe a luz : uma luz invisível mas munida do poder novamente descoberto de tornar os corpos visíveis, esse mesmo poder que a pintura possui. A luz liga o espaço diante do quadro no qual nós nos encontramos, ao espaço escuro que está atrás da moldura do quadro, quer dizer os dois lugares onde os corpos podem existir : nosso corpo no lado externo e o corpo pintado no interior. Paradoxalmente, a luz é materializada unicamente somente quando ela toca um corpo sólido e descreve as superfícies do corpo. A luz e a obscuridade, colocando em cena o corpo e o espaço são os signos do mundo físico no qual o homem vive.  São fenômenos óticos. Mas nessa caso, existe outra coisa que somente a visão. A memória  é então uma aptidão visual pois nossos olhos  reconhecem do que o espírito está se recordando. Tanto quanto ler, ver é um exercício de memória. Estranhamente, o quadro nos chama para a lembrança de um corpo.  Não um corpo nem um corpo em geral, mas o corpo particular de uma pessoa com um nome e uma idade. A obsessão de datar seus retratos revela a intenção dos pintores em descrever uma vida  singular. A existência individual reflete-se num retrato individual. O objetivo da memória inclui aquela da singularidade de um corpo que,  na medida na qual o corpo não pode sobrevive, sobrevive num duplo, o duplo do quadro.
   O que é dado na sociedade ocidental, nesse momento é aceito como alguma coisa que limita o nosso olho, mas ao mesmo tempo permite esclarecer.
  O contingência prevalece sobre a transcendência. A transcendência está sempre lá mas ela não é mais acessível para a representação nem para as palavras nem para a  pintura . A cortina esconde o que se esconde do outro lado. Do lado de cá da cortina, existe a superfície do visível que, segundo as normas é também o mortal.  O «trompe l´œil» procede do grande jogo, maravilhosamente ilusório da pintura, mas também possui   uma qualidade moral : seja qual for a coisa vista, ela nos engana da mesma forma.  Assim a pintura não é apenas uma ilusão, mas representa também a ilusão ( em relação com o outro mundo que, de toda maneira está fechado ao nosso olhar). O retrato nasce ao mesmo tempo em que é representado pela primeira vez o esqueleto.  A morte está limitada pela mesma contingência que o corpo. A morte como a experimentamos em nosso mundo. A dança macabra, o túmulo com o morto hirto e o retrato vivo, são invenções contemporâneas. Eles testemunham a lei da superfície que torna-se tão impenetrável como a pintura. Mesmo quando a pintura representa o espaço, ela o faz utilizando um médium que é a encarnação da própria superfície : o quadro.
  A mim parece que espaço vivo é o oposto da superfície fechada. A superfície não pertence só ao verdadeiro médium pictural que representa o espaço, ela indica também que existe um outro tipo de espaço. ( e espaço desconhecido de um  mundo transcendente) que se esconde atrás da  percepção da superfície. É uma superfície simbólica sobre a qual projetamos nossa visão empírica assim como o nosso saber. O «trompe l´œil», enquanto invenção da pintura do século XV, cria relevo na superfície plana.  Ele  não penetra nessa superfície,  mas faz jorrar em nossa direção e projeta  em direção ao nosso próprio espaço tudo aquilo que vemos; mesmo a face humana é uma superfície fechada, uma máscara física e impenetrável consequentemente, atrás da qual desenha-se a vida da alma. A face, seguramente, é penetrada e animada pela expressão da alma. Contudo, é um domínio do corpo e da mortalidade, guardada viva e preservada pela pintura. É também uma interface pela qual uma pessoa se dirige a um espectador e pede para ser lembrada. Trata-se  de uma espécie de relação interpessoal  cada vez que esta relação é interrompida pela ausência ou pela morte, a ausência definitiva.
 A memória veiculada por uma imagem pintada, refere-se por sua vez a uma imagem natural já presente no próprio corpo . Nicolau Oresme, na tradução de a Oiconomy de Aristóteles, fala da imagem corporal : «a natureza não nos dá uma vida permanente». É por que em compensação, ela «perpetua a nossa semelhança em nossas crianças. A criança é uma imagem viva de seus pais. É isso que Georges Chastellain pensa quando ele descreve o duque de Borgonha, o protetor da Jan van Eyck. Ele possuía, diz ele « a face dos seus pais». É o resultado da genealogia e a genealogia sendo o fundamento da casa reinante. O que também pode se aplicado a uma família privada. O novo interesse pelo corpo transforma igualmente o retrato dos príncipes que perde seu idealismo longínquo e abstrato. Os cronistas descrevem cada vez mais os príncipes como «seres humanos como vocês e eu». Não é tanto uma desmitologização do que uma nova concepção da natureza humana que não exclui mais os personagens de alta hierarquia. O retrato do príncipe, consequentemente, adota o realismo enquanto traço particular de um retrato : se há realismo esse não pode ser do que  o  realismo do ser humano enquanto tal.  Mesmo escritores como Chastellain tendem a «perpetuar a composição do corpo e o rosto vivo» do duque.  O que os próprios pintores contemporâneos começaram. Com a pintura de cavalete enquanto médium da memória, a memória adquire também a qualidade de uma definição antropológica : a definição desse ser único, que é o homem (fig.07):  
Fig. 07 - VAN EYK, Jan (1390 -1441) - Retrato de BAUDOUIN de LANOY óleo sobre madeira  26 x 20 cm Berlin Staatliche Museum Preusische Kulturbrstz

  Existe com efeito o que eu denomino de antropologia pintada.  Compete-me abordar aqui o problema do dualismo inerente à natureza humana, o dualismo do corpo e da alma que tinha sido provado pela teologia e o humanismo, muito antes  que a psicologia moderna, com o seu próprio dogmatismo se tivesse imposto. A relação da psiquê com o corpo (que, mesmo para nós hoje em dia permanece um mistério) é uma questão de fora e de dentro, do visível e do invisível. Ela  faz nascer o problema de uma nova linguagem visual quando os pintores, de repente, reproduzem com sucesso apenas o corpo.  Foi porque eles foram forçados a usar as metáforas e os signos para sugerir o que eles não podiam descrever. Eles concentraram-se assim sobre o olho, pois o olho havia sido percebido desde os tempo imemoriais como «a janela da alma». Mesmo Chastellain, na sua descrição do duque Felipe  toca nessa questão  e declara que «o olhar revelava o interior do coração». O olho sendo o único vínculo do interior e de fora e que, no seu  conjunto, formam a organização humana.
  Concede-se ao olho, na pintura flamenga primitiva, uma importância  surpreendente e é visto, geralmente, sob um ângulo diferente da cabeça, o que indica que tem uma vida própria. Em geral, ele tratado como um espelho natural porque  o reflexo da luz aparece antes sobre sua superfície convexa. Ademais, a luz penetra igualmente o olhar e assim inaugura o milagre do ver. O olho representa o paradoxo de um espelho que enxerga, passivo e ativo, exterior e interior ao mesmo tempo. A ambigüidade do visível e do invisível esta presente maravilhosamente na forma do olho. Sobre sua superfície visível, vemos o reflexo de tudo o que cerca a pessoa,  quer dizer o mundo material. Mas no centro desse espelho que não pode ver, abre-se o buraco negro do olhar que recebe uma imagem, mas não só uma imagem. Para nossos pintores flamengos e seus clientes, isso era normal mas não o suficiente. A alma achava-se num outro mundo. Ela tinha necessidade de olhar para o interior e assim encaminhar-se ao seu verdadeiro destino . Então uma nova ambigüidade aparece, uma ambigüidade simbolizando o dualismo inerente à natureza humana. A dupla janela que se reflete algumas vezes nos olhos. Toma o sentido escondido de uma bela metáfora : a janela interior e a janela exterior. Cada vez que a pessoa representada está num interior de uma casa, então a janela se reflete nos seus olhos pois a luz entra pela janela.  Janela e luz tornam-se sinônimos e é lá que começa a metáfora do olha como janela da alma.
  A transformação da superfície pintada do quadro em uma superfície de espelho é sugerida pela janela refletida nos espelhos pintados nos quadros, pois a janela não só recebe a luz mas também separa o espaço no qual nos encontramos,  de um outro espaço no qual não estamos. Assim oferecem-nos uma segunda metáfora e á a janela simbólica. Ela representa um mundo para além do empirismo, um mundo que só a alma pode imaginar. O espectador do século XV conhecia, esse outro mundo, pela fé cristã e ele sabia também que a memória, no seu sentido mais profundo, era uma capacidade inata da alma que se lembrava de sua casa celeste. O mundo era o domínio da percepção, o outro mundo era o domínio da imaginação. A janela não revela o que está atrás dele, mas sublinha que existe alguma coisa para além da superfície empírica que não se abre para a imaginação a não ser em certos casos raros, aos santos que tinham uma cesso à uma visão celeste.
  Contudo, uma tal janela incluía também a experiência da arquitetura européia com seus muros de pedra maciça. Os muros de suas casas encerravam os habitantes, da mesma forma como eles se sentiam encerrados nos seus corpos, em vez de se fundir na natureza aberta (como é o caso da cultura asiática). O quadros, desde que foram pendurados nas paredes da casas (com ainda o são) constituem um tipo particular de janela.. Eles faziam o papel de janelas artificiais ou pintadas (trompe l´œil) que ofereciam uma vista predominantemente dirigida. Nesse sentido, tais quadros eram um médium como a televisão (a primeira desse tipo) porque  ele simulavam uma vista, não somente do interior para o mundo exterior, mas também uma vista do próximo para o longínquo, uma «tele-visãos». O outro mundo estava mesmo mais afastado e por conseguinte, ele representava ainda mais radicalmente um semelhante da «tele-visão» (a transcendência ocidental ou metafísica sempre exigiu um tal limite, como janela é o que definiu a diferença entre a visão do espectador e sua posição fixa).
 O novo quadro flamengo respondia a uma função mnemônica particular quando era tratado com retrato. A memória, nesse caso, devia ser a da personagem que merecia a memória. Não era mais suficiente lembrar da alma que tinha deixado o corpo e tinha necessidade da reza dos vivos para sua salvação. A memória atestava também a identidade de uma pessoa, na medida na qual  ela havia vivido num contexto social e num corpo individual. Enquanto tal, o quadro só, com seu corpo enquadrado de madeira, cumpria a nova tarefa  de representação : não somente a aparência de maneira geral, mas a representação como discurso filosófico e antropológica. O retrato não representava somente um corpo singular mas valorizava uma vida singular para além de todas as distinções sociais. Chegava-se assim a uma equação  «um sobre um» entre a pessoa representada e o quadro representando-a.  Assim, o retrato tinha o papel de um espelho eterno que contrariamente a um espelho ordinário, guardava a sua imagem, para sempre e mesmo após a morte do corpo. Mesmo o quadro devocional (domínio onde este trabalho de representação havia começado) representava a pessoa, menos pela sua aparência do que pela sua visão e seus sonhos. 
Fig. 08 – WEYDEN,  Rogier van der - ( 1400-1464)   -  Retrato de  Francesco  d’ESTES – c. 1460 – Têmpera e óleo sobre madeira -  29.8 x 20.3 cm - New York – Metropolitan Museun of Art, - Friedsan Collection

Cada quadro, sem consideração de gênero nem objetivo, adotava o que  denominamos  habitualmente a perspectiva mas que é de fato, a visão única, a visão mono cêntrica do mundo a partir do ponto de vista de um corpo único e  consequente, dependente do comportamento de uma pessoa única: uma visão que dirigida que sublinha o direito de uma pessoa que olha. O quadro, como vimos, que age  tanto como um espelho, como uma janela, não é outra coisa do que uma superfície plana que nos lembra um antepassado importante, o escudo com as armas, Quando eu digo antepassado, utilizo esse termo num sentido concreto. O escudo apareceu antes, o quadro em segundo lugar e era pintado muitas vezes pelos mesmos artistas. Estamos aí em presença de uma coincidência que foi totalmente negligenciada no debate sobre a origem do quadro na cultura europeia. É inútil lembrar o escudo enquanto era carregado pelos cavaleiros durante as batalhas e o torneios, era tanto uma arma de defesa como um meio de auto representação. No primeiro caso, ele protegia seu proprietário enquanto pessoa protegendo-se atrás de sua superfície. No outro caso ele identificava seu proprietário graças à heráldica enquanto seu rosto permanecia invisível sob o elmo fechado. Quando o inimigo, ou o público de um torneio, via as cores ( permitia descrever a heráldica), essa cores identificavam imediatamente seu proprietário (como se tratasse do rosto)
FACE e REVERSO
Fig. 09 - WEYDEN Rogier van der - ( 1400-1464)   Verso da obra  FRANCISCO d’ESTES – c. 1460 – Têmpera e óleo sobre madeira -  29.8 x 20.3 cm New York – Metropolitan Museun of Art, - Friedsan Collection

 É pois de primordial importância que as fontes escritas da época usassem indiferentemente o termo quadro para o escudo como  brasão heráldico e para o quadro pintado  (figuras 08 - 09)  . A mesma coisa se aplica ao termo escudo (SCHILD) flamengo e holandês. A palavra schilder designa ao mesmo tempo aquele que fabrica o escudo e o pintor. Schilderij significa ao mesmo tempo pintor de brasões e pintor de quadros, uma dupla tarefa muitas vezes confiada aos pintores da corte, segundo as fontes contemporâneas. Hoje em dia, em alemão, distingue-se Wappen de Waffen, quer dizer  os brasões das armas reais, mas a terminologia era, no passado, menos nítidas ( e generalizante no intenção). O mesmo médium ( uma prancha em madeira pintada) semelhante em aparência e diferente por sua função no caso do retrato revela uma equação simbólica que merece que se preste mais atenção.

  Os brasões prevaleciam no uso aristocrático onde eles representavam uma identidade de outro tipo : a noção trans pessoal de potência de territorial, e como tal qualificava uma família ou dinastia. Muitas vezes, as crônicas esquecem o nome de um senhor feudal e o identificam  antes como o senhor de um dado território.  O que os brasões tinham representados para essa classe social foi retomado pelo retrato por um outra classe social, a dos cidadãos comuns. Os dois usos se confundiram muito rapidamente,  mas sua origem permanece claramente distinto. O fato a que a aristocracia tinha desenvolvido o retrato dinástico mais cedo não é uma contradição. Ela tinha necessidade da burguesia que acabou usando o retrato como marca distintiva. Esso, no entanto, não se pode fazer sem a integração de única diferença social.  Ficando estabelecido que as duas classes sociais antagônicas não permitiam nenhuma integração social, a solução era a integração antropológica enquanto distinção meta-social do ser humano, nascido da carne e morrendo na carne.
 Parece perturbador descobrir o quadro-retrato habitual como parente próximo desta arma antiga e de seus brasões. Mas essa relação oferece uma chave  preciosa para a releitura da significação do retrato primitivo, como sendo um símbolo e uma prova do  conceito recentemente desenvolvido da pessoa humana. A representação, sem nenhuma dívida, veicula sempre uma noção de defesa e de ataque. Da mesma forma o escudo primitivo nas cores dos brasões, era não só uma arma mas também uma interface, aparência pintada sugeria também uma interface, ainda que não tendo nenhuma função no campo de batalha. Esta aparência pintada veicula a noção de pessoas em termo legal, o que era a situação primeira da sociedade burguesa. Sob o plano da memória leiga ou das reivindicações do modelo deveriam tornar-se manifestas ( herança, propriedade, administração, sucessão), o retrato introduzia a interface como opondo  a face natural, criando assim a presença indireta pela viés de um de um suporte da presença, o médium pintado. Mas o termo «presença» não é suficiente para caraterizar a verdadeira mensagem desta representação. A representação incluindo um objetivo  em representar alguém que desejava ( ou tinha necessidade de ) se expressar : uma pessoa quando defender seus direitos, lembrar a cada espectador suas reivindicações  e resistir a aqueles que queriam contestá-los. É preciso lembrar-se das reivindicações inerentes a cada representação na medida em que elas serviam para promover una primeira definição do ser humano ( enquanto cidadão ou em qualquer outro título) antes mesmo que uma definição geral do sujeito humano (em termos diferentes que o religiosos) não nasce. O rosto  em pintura, por conseguinte, fazia o papel de interface, quer dizer uma superfície permitindo a  troca de uma pessoa ausente por uma pessoa presente.
 Essa descrição é também válida no domínio religioso se o retrato ( e também a imagem do doador) como uma interface diante do ser utilizado por Deus ( e a quem ele responderia). O domínio religioso era tão estruturado por  reivindicações, direitos, e de deveres como o domínio laica : era-se membro da igreja ( todo o mundo o era) de uma cidade, de uma corporação, de uma família. Havia uma espécie de relação contratual entre o crente e seu criador, que dizer também uma relação interpessoal. O rosto  em pintura, portanto onde quer que se expusesse, chamava a atenção : atenção do criador celeste (seu criador) como da família, ou da corporação  supondo lembrar-se do defunto nas suas preces. Mesmo no domínio religioso, a  interface pintada tinha um papel de um médium artístico e artificial para a presença e a memória.
O retrato, recentemente criado, delimitava uma existência secular que não dependia da hierarquia, nem da potência, mas de uma vida reconhecida pela autoridades : uma vida que os pintores, da mesma forma que os notários e os oficiais municipais pelos seus escritos, legitimavam (tornando oficial) pela aparência ( propriedade do indivíduo)  pelas datas do nascimento e da emissão do documento; não é por acaso se o nome legal só completava a função do retrato legal. Ao  lado do discurso dos teólogos que definiam o sujeito como uma criação à imagem do criador, competia à vida municipal categorizar o sujeito enquanto membro, quer dizer em termos descritivos de seu registro. Assim o retrato era não só definido pela aparência fisionômica ( que para ser completo  esperava a vinda de descendentes como herdeiros dessa aparência) Mas também pelo mesmo fato da reprodução que  por esse fato autenticava a existência daquele era representado ( como alguém que possuía uma imagem de si mesmo). O retrato no entanto não deveria terminar nos arquivos silenciosos da memória mas necessitava da interação de alguém mais : numa tal interação, o rosto em pintura nascia  graças a uma interface técnica, a saber um médium usado de cada lado, como se o sujeito representado estivesse presente em pessoa. O retrato europeu, como procuramos demonstrar, foi inventado em condições específicas e locais que ensaiamos reconstruir.
 Em termos gerais, uma teoria do quadro primitivo, enquanto entidade delimitada, independente assim como móvel, deve ser inscrito na história da primeira noção moderna de  sujeito sem ter em conta o fato que se tratava do retrato de uma pessoa ou de um testemunho de uma visão centrada do mundo. É necessário, no início, considerar no interior do quadro da história do ícone que abandona seu uso cultural e se transforma em ícone da pessoa comum.
 Em seguida é necessário considerá-lo no interior da história da arquitetura privada europeia  que comunicava através das janelas com a natureza, arquitetura que por sua vez, torna-se um idioma da vida urbana ( mas também metáfora de quem estivesse incluído  no corpo como o corpo incluído nos muros de uma casa) : considerar nessa perspectiva, o quadro não é mais do que uma janela pintada (para ver à distância o mundo e a natureza) ou em outros exemplos, um espelho para a auto-reflexão. A teoria do quadro, deve finalmente reconhecer o retrato como sucedâneo do escudo defensivo na medida em que os dois manipulam a representação de uma forma defensiva ou agressiva e tornando não somente uma pessoa mas também uma reivindicação visualmente certa.
Permitam-me concluir com uma história que ilustra meu propósito sobre o quadro e o escudo e  permitem-nos  ter acesso ao mundo perdido da cultura feudal no meio de cidades nascentes.. Essa anedota encontra-se nas crônicas de Olivier de Marche que, em 1445, descreve a assembleia da Ordem do Velocino de Ouro enquanto testemunho ocular. Durante essa assembleia teve lugar um missa em memória na igreja Saint-Bavon de Gand, o mesmo santuário que abriga o retábulo dos irmãos van Eyck. Os cavaleiros reuniram-se no interior da igreja diante « de grandes quadros ricamente pintados» que traziam os seus brasões, seus nomes e suas divisas. Algumas cadeiras ficaram vazias, e no caso, o escudo heráldico foi colocado contra cortinado negro. O cronista perguntando o que significava isso e lhe responderam que eram os escudos dos que tinham morrido desde a última assembléia. A cadeira do rei de Aragon estava com um rico pálio com tecido de ouro como se ele estivesse presente em pessoa. A cadeira do duque de Borgonha (que era o soberano da ordem) distinguia-se por um quadro cujo brasão era mais importante do que o resto da assembleia. Sobre o muro, na altura, no exterior do coro, havia escudos dos que tinham morrido bem antes da última Assembleia da Ordem; eles estavam suspensos de tal forma que todos os podiam ver e reconhecer. Durante a celebração, chamava-se cada cavaleiro pelo seu nome e pedia-se que trouxesse uma vela acesa sobre o altar. Cada ausente era representado por um procurador da Ordem. Tal é a história se encontra nos textos de Olivier de la Marche. Pode-se juntar  aquilo que a ordem representava para os cavaleiros, a corporação e a família o eram para o cidadão particular. Os dias de comemoração e de enterro, seu escudo contudo não tinha, a mesma aparências. Ele era o retrato pintado, a encarnação da própria memória pessoal.

O texto traduzido aqui é o de uma conferência do autor em Colmar  em 1997 no quadro das Jornadas de Estudos sobre a Descrição. Ele não contém contudo resultados definitivos,  mas se apresenta mais como uma tentativa para prolongar as ideias contidas no livro obre a Invenção do Quadro. O primeiro século da pintura flamenga, Munique, 1994, publicado pelo autor em colaboração com Christiane Kruse.  Assim a presente contribuição deve ser compreendida como um «work in progress». Ele constitui à 1ª etapa de um trabalho sobre brasões e o retrato, levado no quadro de um projeto de antropologia dos médiuns figurados, na Escola Superior de Karlsruhe. No que concerne às referências bibliográficas,  remete-se o leitor ao livro mencionado acima
   Tradução (do alemão ) de Marie Schirer.

Tradução do francês para o português de Círio SIMON - Seminário “Modernidade: arte e arquitetura: questões teórico-metodológicas” Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Bastos KERN- 01 de maio de.2000 FFCH - PUC-RS

FONTES NUMÉRICAS DIGITAIS.
CAMPIN Robert (1375-1444) Retrato de Robert de MASMINES  - antes de 1430-  óleo sobre madeira  - 35 x 24 cm- Madrid- Museu Thyssen Bornemisza

CHRISTUS, Petrus (1425-1476) - Monge Cartuxo - 1446 Tempera e óleo 29.2 x 20. Cm NY Metropolitan

VAN EYK Jan  (1390 -1441)
LEAL SOUVENIR
 Homem com turbante
BAUDOUIN de LANOY
Jan de LEEUN
Cardeal Nocla ALBERGATI

WEYDEN Rogier van der ( 1400-1464) Francesco d’ESTE
FACE e REVERSO
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