quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

CAMUS: QUANDO o INTELCTUAL AINDA FALAVA

Revista do Globo,nº 490 , 03 .09.1949, p 40.

ALBERT CAMUS

QUANDO o INTELECTUAL AINDA FALAVA e


ERA ESCUTADO por MULTIDÕES.


“Mais vale enganar-se - sem assassinar ninguém - do que ter razão no meio do silêncio e dos túmulos”.


Camus – Revista do Globo, nº 490..



As menos de 24 horas de presença da Albert Camus (1913-1960) em Porto Alegre tornaram-se um mito. O mito encobriu a sua mensagem do dia 09 de agosto de 1949 na capital do estado. A realidade é muito maior do que o mito. Infelizmente, diante deste mito - pronto e fácil - o que menos importa é a realidade “do que” o jovem filósofo Camus veio dizer, “como” e “para quem” falou aqui. Afinal, quando ele veio a Porto Alegre, tinha 36 anos apenas e receberia o Premio Nobel em 1953.


Se quisermos penetrar no sentido do que ao autor do livro “A Peste” veio fazer em Porto Alegre, em 1949, é possível escutar e tentar decifrar o que os repórteres conseguiram traduzir e decodificar da palestra de Camus no IBA-RS e registrar, entre outros, na Revista do Globo nº 490[1] de 03.09.1949. A palestra da Camus tinha o título “ A Europa e o Crime” e , segundo o repórter da Revista, era sugestivo e da mais viva atualidade.


Os intelectuais Érico Veríssimo e Jean Roche tinham os pés firmemente apoiados na província e a cabeça aberta para todas as correntes civilizatórias do planeta, viessem donde viessem. Na sua sabedoria distinguiam as contradições dos intelectuais de sua cultura e época. Muito preciso Érico Veríssimo declarou ao jovem visitante as esperanças de Porto Alegre, no palco do auditório do Instituto de Belas Artes, lotado por uma multidão, “Vós sois uma das mais claras, mais belas e corajosas vozes da resistência. Vós representais... o homem que... se encontra oprimido entre o mundo que agoniza e um outro que nasce”.


No mundo que morria buscavam-se lenitivos para as feridas dos mais ferozes nacionalismos da história da humanidade. Nacionalismos que em certas regiões estavam em plena gestação e outros na memória muitos recentes e com fardos de injustiças de toda ordem. No outro, que nascia, Gandhi, havia vencido pela não violência, mas fora vitima, no ano anterior do crime cujo tema era o mote para Camus desenvolver em Porto Alegre. A imensa China Mao-Tse-Tung estava concluindo a sua Grande Marcha e prestes a proclamar a Republica Popular. Os vencedores da II Guerra Mundial estavam se armando com engenhos com os quais poderiam riscar da face da terra, várias vezes, toda a população humana. Engenhos que estes vencedores continuam estocando e hipocritamente negam o seu desenvolvimento para outros. Em 9 de agosto de 1949, o Brasil estava vivendo o período da pós redemocratização, que sucedeu Estado Novo e que deixara muitas viúvas e saudosistas. Viúvas que se concertaram e coerentemente estavam preparando a volta Getúlio ao poder nacional, em 1950.


Na sua conferência em Porto Alegre Albert Camus disse, o problema da Europa atual é que o continente “está sob o regime policial, cheio de pessoas deslocadas” . Ágil e elegante ele não deixou de apontar a causa desta opressão, “ porque [aEuropa] se submeteu à eficiência”. Causa que está longe de ser equacionada, em 2010, pela união em bloco. União que só tem aumentado o volume dos problemas e os riscos fatais de qualquer desequilíbrio neste conjunto


Camus definiu “a Europa de hoje como alguns homens errantes procurando a amizade perdida”... a única saída era “o decidido esforço dos artistas contra os conquistadores”.


Se a Europa mostrava as chagas das corrupções e as marcas da entropia de qualquer projeto humano, podia mostrar, também, as marcas de civilizações que haviam empolgado as melhores e produtivas energias humanas. Este lado positivo não era o objeto direto do discurso de Camus. Mais do que discursos e denúncias, ele estava ali, em pessoa, para mostrar o que era possível para um pobre “pied noire[2] e que aceitou inverter o sinal das violentas regras de jogo do colonizador da Argélia e daqueles franceses que viviam as custas da violência que se praticava, em seu nome, nas suas colônias.


Camus é atualíssimo na História. Ele percebe que existem duas faces na História, de quem a constrói a narrativa e de quem a recebe. Narrativa que se quer pronta, mas que supõe ser aberta á reversibilidade às fontes das suas informações, arejada e possível de questionar as suas origens míticas. Camus era um daqueles seres privilegiados que era capaz de quebrar o mito, realizar rupturas epistêmicas - quando há condições para tal - pois cultivava o hábito da integridade intelectual sem fundar escola ou sem se importar com a aura de um mito. Segundo Raphaël Enthofen[3] quando declarou


“Não existe nenhuma escola quando é Camus! É um daqueles filósofos que a odeiam. Durante sua vida, ele foi visto pela extrema-direita como comunista pelos comunistas como um reacionário pelos religiosos como ateu, e ateus como um homem de fé ... Camus é uma aventura individual”.


Ele sempre foi maior do que o mito que se formou ao seu redor. No seu humilde túmulo no sul da França resplandece muito mais do que os “imortais” do Pantheon de Paris. Ele sempre aceitou a dúvida como premissa. Assim ele retira a base da narrativa que se quer pronta. A sua obra denuncia a onipotência, a onisciência, eternidade e onipresença de origem.


O repórter da época escrevia que Camus “denuncia as filosofias da força e do mito pernicioso do heroísmo a todo preço”. Na percepção de Camus o lugar deste heroísmo a todo preço “os homens devem cultivar a honra e a boa vontade” – manifestando a sua decidida repulsa a toda e qualquer violência legitimada. Ao terminar admite mesmo a ruína do seu projeto de escritor como preço a pagar pela não-violência. Ele afirmou em Porto Alegre “se por desgraça o escritor fracassa na sua generosa missão, mais vale enganar-se sem assassinar ninguém do que ter razão no meio do silêncio e dos túmulos”.


Na França e na Europa de hoje a saga de Albert Camus seria impensável. Como no Brasil é impensável, para toda população de Porto Alegre da época, decodificar na pessoa do seu visitante assustado de 09 de agosto de 1949, o que significava esta figura, a cultura individual e coletiva de que Camus era portador. Ainda bem que Porto Alegre tinha um Jean Roche (1917-2006), um Érico Veríssimo (1905-1975) e um Guilhermino César (1908-1993) para fazerem as honra da casa no Instituto de Belas Artes.



Algumas discussões atuais, na França, sobre Albert CAMUS http://www.lemonde.fr/culture/panorama/2010/01/04/les-multiples-visages-d-albert-camus_1287154_3246.html


http://www.lemonde.fr/aujourd-hui/article/2010/01/04/camus-le-fidele-infidele_1286835_3238.html#ens_id=1287075









[1] DAMM, FlávioCAMUS em PORTO ALEGRE – Revista do Globo, ano XXI, nº 490 , 03 de setembro de 1949, pp. 40/1 - Porto Alegre : Revista do Globo S.A.




[2] - “Pied – Noir literalmente é “pé negro” que descreve a população francesa que viveu na Argélia e que se repatriou para a França. Este termo ganhou todo o seu peso negativo a partir de 1962 ano da independência da Argélia após conflito com muita violência e mortes.




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