HERANÇA de 1964.
O grande legado do Golpe de 1964 é a cultura do EU.
Como em qualquer ditadura o individuo (EU) ficou isolado do próximo (OUTRO) e jogado num OUTRO abstrato e pseudo-salvacionista de um perigo imponderável e impessoal. Em qualquer regime totalitário o EU é reprimido em função deste perigo e salvo por um OUTRO hipotético e de uma totalidade abstrata. Evidente, para efeito de comunicação e do marketing, este OUTRO abstrato possui uma face única e legível para todos: o ditador emanado de um regime que lhe dá suporte e moldura.
O EU, isolado por estas circunstâncias, inicia um ciclo subterrâneo de subterfúgios, vivendo em função de sua alienação. O EU, no seu aspecto subterrâneo e subliminar, inicia um processo de contaminação com o seu próximo, também reprimido. Este processo gera uma cadeia de realidades incontroláveis e sem projeto. A força das baionetas nada poder fazer contra esta moléstia social a não se assustar mais e agravar a moléstia que atinge o EU. Com as baionetas e possível fazer muita coisa: mas o ditador não consegue ficar sentado em cima das suas pontas agudas.
A cultura do EU reprimido busca libertar-se a qualquer preço. Ele não possui qualquer projeto. Abraça qualquer projeto ou realidade que o possam arrastar para fora do domínio do tirano.
Todo contrato social e político são inviabilizados pelo EU doentio e contagioso do mal herdade da ditadura de 64. Os golpistas queriam e colocaram todos os seus objetivos para atingir este fim. O objetivo de qualquer tirano, ou grupo que busca a hegemonia, é jogar o OUTRO na heteronomia e mais abjeta anormia da vontade
O perigo está nesta falta de projeto autêntico. Vive um pseudo-projeto sem condições de expressar o todo. Este todo que ele percebe como corrupto e inadequado para o tempo e lugar no qual vive. O seu único afazer é buscar destruir todo este pseudo-projeto.
Um projeto autêntico de democracia ganha vida saudável, para Mary Follet (apud CARVALHO, 1979, p.60), na condição de que:
“só teremos democracia verdadeira quando os jovens não mais forem doutrinados, mas formados no caráter da democracia. Portanto o meu dever como cidadão não se esgotou naquilo que trago para o Estado. Meu teste como cidadão é quão plenamente o todo é expresso em mim ou através de mim”[1].
A cultura do EU - longamente reprimido e que busca libertar-se imediatamente - não possui as condições de um projeto democrático.
O pior é que esta patologia do EU está contaminando e acaba criando pulsões de opressão que se traduzem em projetos individuais na educação incapazes de “expressar plenamente o todo em si mesmo”. O EU - doentio e procedente de uma cultura desenvolvida numa epidemia generalizada - perdeu a noção de conjunto e a proporção de si diante do todo.
O seu projeto é sempre urgente, prioritário e acaba imitando e usando os mesmo métodos do seu opressor coletivo. O remédio é a educação. Mas aquela educação - que possui um projeto de longo alcance - é muito cara e lenta para germinar, florir e dar os seus frutos.
Toda verba para a educação - por maior e mais específica que seja - só será uma ajuda caritativa para um doente terminal e com alto risco de contaminação de tudo e de todos que o cercam. O diagnóstico e a busca de cura da AIDS são coincidentemente desta mesma época. Doença que possui sua natureza individual e o seu controle, com características semelhanças e patologias do EU inteiramente mergulhado no solespismo absurdo e absoluto.
O assustador é que, em 2009, quando se lembram os tristes 45 anos do golpe todos os componentes para o reinício de um ciclo de cultivo do EU esta presente e ativos na cenas regional, nacional e internacional. O perigo agora é uma CRISE que ninguém sabe dimensionar e um ente assustador par o indivíduo que se refugia n sua concha contaminada. Um EU que pertence a uma geração desorientada e ainda infeccionada por uma ditadura não curada. Desorientação característica de uma geração que não viveu e experimentou diretamente o Golpe de 1964 e que virou mito para o bem ou para o mal, dependendo do EU que se apropria deste fato e produz uma narrativa a partir dele.
Ninguém busca fazer a apologia do todo coletivizante e nem do EU solipsista. Para o artista Marcel Duchamp tanto o coletivo como o indivíduo possuem assombrosos potenciais ainda não explorados.
“Sob a aparência, estou tentado dizer sobre o disfarce, de um dos membros da raça humana, o indivíduo é de fato sozinho e único e no qual as características comuns a todos os indivíduos, tomados no conjunto, não possuem nenhuma relação com a explosão solitária de um indivíduo entregue a si mesmo”.
DUCHAMP. Marcel “O artista deve ir à universidade?”[2]
[1] CARVALHO, Maria Lúcia R.D. Escola e Democracia. Subsídios para Um Modelo de Administração segundo as Idéias de M.P. Follet. São Paulo: E.P.U. Campinas, 1979. 102p.
[2] - Texto de uma alocução em inglês pronunciada por Marcel Duchamp, num colóquio organizado em Hofstra em 13 de maio de 1960.
Consta em SANOULLET, Michel. DUCHAMP DU SIGNE réunis et présentés par.. Paris Flammarrion, 1991, pp. 236-239
Traduzido para Victor Hugo Guimarães Rodrigues - professor da FURG - por Círio Simon em 27 de junho de 2004 no contexto do 1o Colóquio dos Dirigentes das Instituições Superior de Arte do Rio Grande o Sul realizado entre 24 e 26 de junho de 2004 no Instituto de Artes da UFRGS.
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