domingo, 29 de novembro de 2009

AUTONOMIA da ARTE




TODOS SÃO COMPETENTES em ARTE e em CULTURA”.

Quem cultiva a inteligência sabe que uma das regras básicas é a dúvida e a capacidade de se orientar por distinções apropriadas aos problemas.

Como “todos são artistas e pessoas ditas cultas”, não há menor constrangimento em colocar em cargos na administração das artes e da cultura, qualquer pessoa e com a mínima experiência em criação artística ou mesmo apenas iniciadas na promoção de eventos ditos culturais.

Para disfarçar a maracutaia convidam-se alguns artistas ou pessoas avulsas formadas no campo da arte. Contudo, apesar desta formação estrita e formal, são jogadas na heteronomia absoluta. Artistas subalternos que pintaram cuecas nas imagens Juízo Final da Capela Sixtina de Miguel Ângelo. Devem favores e, em retribuição, querem agradar.

Poucos artistas sul-rio-grandenses conseguiram expressar a autonomia da arte face á heteronomia promovida e mantida por aproveitadores e autoridades de ocasião. Entre este convém citar Iberê Camargo que resistiu, até onde pode, á homenagens em cima do artista.

Para exercitar e expressar esta autonomia do artista há necessidade da coragem de um Tasso Corrêa (1901-1977) quando descreveu, em 1933, a heteronomia em se encontravam às forças do campo da arte face às condições de administração impostas por outros profissionais:

- Pra demonstrar o absurdo da nossa organização administrativa lembraria o seguinte: uma Faculdade de Medicina, dirigida por uma comissão de musicos, pintores e escultores... A sua situação deveria ser identica á do Instituto de Belas... que é uma instituição dirigida por médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, etc.[1].

Esta expressão da autonomia valeu para Tasso Corrêa a sua expulsão, no mesmo dia, do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul. Contudo o mesmo questionamento poderia se fazer em relação às Secretarias da Fazenda ou de Obras Publicas, se fossem dirigidas por cineastas, músicos ou escultores profissionais.

A Revolução de 1930 tentou, em vão, erradicar o jeitinho brasileiro da cultura[2]. Francisco Campos fulminou:

“O Brasil dos dois países, o legal e o de fato: o país da mentira e o país da realidade, queremos ter professores sem cuidar de formá-los, higienistas sem uma escola de higiene, operários qualificados e produtores capazes, sem formação técnica e educação profissional. Daí em quasi todos os ramos de atividade a improvisação de curiosos em competentes.” (CAMPOS, 1931, p.5 )[3].

Era o mesmo discurso dos jovens de Porto Alegre, já haviam evidenciado em 1926[4]. O discurso vinha agora do interior do aparelho do estatal. Este criou o Ministério da Educação e da Saúde Pública (MESP), em 14 de novembro de 1930 e nomeou Francisco Campos como o seu ministro[5]. Este trabalhou para unir os dois países[6].

A civilização se vangloria haver vencido e expurgado da sociedade curandeiros, engenheiros improvisados e charlatães administrando poções mágicas. Contudo a arte e a cultura, nesta mesma civilização a sua população ainda continua entregue mistificadores e cabotinos. Pior estes mistificadores e cabotinos estão investidos e legitimados em altos indiscutíveis cargos públicos.

O fiel possui todo o direito de questionar as credenciais de quem se apresenta para agir como o seu guia espiritual. Na arte esta possibilidade de submeter a exame quem vai administrar arte ou cultura- ou menos saber os resultados deste exame - é impossível para o poder originário de um município, estado ou nação. Na própria religião há necessidade de curso de teologia para não entronizar tiranos espirituais do “crê ou morre”. Da mesma forma nas artes o curso superior[7] testa e confere credibilidade a quem se apresenta este guia simbólico e não cair na armadilha do discurso do “todos são artistas”.

Existem muitas amostras dos desafios enfrentados por artistas de todos os tempos e campos, diante da autoridade. Uma das mais conhecidas é a desafiadora autonomia da arte, assumida cotidianamente por Miguel Ângelo diante do pernóstico e autoritário papa Julio II, educado no mandonismo monetário da sua família florentina. Contudo esta autoridade pernóstica renasce em líderes populistas do mesmo estrato social do artista erudito. Devido a esta proximidade cultural e social - entre artista e autoridade de plantão - fornece material para as mais cruéis confusões e desenganos.

Uma destas confusões e desenganos é expressa no fácil discurso populista de que “todos são artistas”, disseminado pelos mistificadores e cabotinos. Expressão que retira a possibilidade daqueles que constroem, a duras penas, um histórico de experiências estéticas. Expressão na qual se percebem jogados nas mãos de políticos que buscam fama[8] e dinheiro socializando, para isto, os prejuízos e embolsam os lucros. Embolsam os lucros como mercadores ou atravessadores de arte e jogam os prejuízos para os artistas. Artistas cujas vontades e almas cultivadas permanecem presas nas camisas de força de contratos aviltantes ou de contratos inexistentes e fictícios.

Quem cultiva a inteligência sabe do valor da dúvida e da competência de orientar a raiz das suas escolhas estéticas por distinções apropriadas aos problemas. É necessário reconhecer e distinguir que a autonomia da arte não a produz por si mesma. Contudo a autonomia parece ser o teste de sua autenticidade e do grau de consciência do artista e a pedra de toque a sanção moral[9] do valor de suas obras.

Se tudo é arte, logo o nada também é arte. Se em arte e cultura todos são competentes, os incompetentes também o são.

- Ou será que a obra de arte é elaborada sem consciência e não possui valor, pois a sensibilidade está separada do direito e da inteligência humana de forma definitiva e esquizofrênica?


[1] - DISCURSO de TASSO CORRÊA como PARANINFO no TEATRO SÃO PEDRO em 24/10/1933.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS – Porto Alegre : Diários Associados, dia 26.10.1933 p.4

[2] - A Revolução de 193 0 triunfou no dia 24 de outubro. Já no dia 14.11.1930 era criado o MESP e no dia 18 de novembro de 1930 tomava posse Francisco Campos no recém criado Ministério de Educação e Saúde Pública (MESP) in Boletim do Ministro da Educação e Saúde Pública (MESP), Rio de Janeiro, ano 1, nºs 1 e 2, jan. jun 1931 p.5. Boletim do Ministério da Educação e Saúde Pública: ano I, nº 1-2, jan. jun 1931.{042a].

[3] in Boletim do Ministro da Educação e Saúde Pública (MESP), Rio de Janeiro, ano 1, nºs 1 e 2, jan. jun 1931

[4] Revista Madrugada Porto Alegre, ano 1, nº 5. Dia 04 de Dezembro 1926 (sem paginação).

[5] - Essa concepção foi realizada por intelectuais que “não dispunham de um princípio de identidade que remetesse a vínculos institucionais. Não se situavam em um campo autônomo, com suas hierarquias e estratégias alicerçadas em critérios relativamente estáveis. Não atuavam, tampouco, no sentido de consolidar as liberdades e os direitos tocantes à condição universitária. Não apresentavam reivindicações do tipo ‘democratização e participação’, como seus homólogos argentinos a partir do movimento de Córdoba, ou seus homólogos chilenos em conseqüência do movimento de Santiago” (PÉCAUT, 1990 : 34).

[6] - No Rio Grande do Sul a antiga Secretaria dos Negócios do Interior e Exterior que gerenciava a educação escolar só mudou em 1937, com o Estado Novo, a sua designação para Secretaria de Educação e Saúde. Seria toda uma investigação como essa designação chegou até aos governos dos estados, apesar dos interventores federais nomeados pelo governo central.

[7] O curso superior ao artista além de fornecer-lhe legitimidade e igualdade aos demais profissionais qualificados, permite ao artista erudito não só fazer, mas também evitar caminhos estéreis, caros e, senão perigosos e que são armadilhas mortais par ingênuos e pessoas despreparadas, mesmo com a melhor boa vontade. Os próprios artistas incentivam a si e aos seus colegas e a uma formação superior como é casão do texto de DUCHAMP, Marcel, que escreveu «L’artiste doit-il aller a l‘université?» in Duchamp du signe. Paris : Flammarion 1991. Evidente não se precisa ir tão longe como Pedro Américo (1843-1905)que foi o primeiro filósofo brasileiro a defender, em 1867, uma tese de doutoramento. Ver MELO, Pedro Américo de Figueiredo. A ciência e os sistemas, questões de história e de filosofia natural. João Pessoa : Editora Universitária, 2001,143 p. ISBN 8523701192

[8] Para entender a luta para livrar o pensamento do avô do uso num contexto absolutamente diferente do original e tentado pelo presidente da França para manter a sua popularidade – a neta de Marc Bloch condena a instrumentalização dos textos do avô, convém ler

http://www.lemonde.fr/opinions/article/2009/11/28/laissez-marc-bloch-tranquille-m-sarkozy-par-suzette-bloch-nicolas-offenstadt_1273481_3232.html

[9] KANT, Emmanuel. Crítica da razão prática. Rio de Janeiro : Tecnoprint. S/d. 255 p

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