A polêmica da constante citação de Marc Bloch pelo presidente francês[1] ou sua vontade de colocar os restos mortais de Marcel Camus no Pantheon da França[2], renova e materializa o texto do “PRÊMIO em CIMA de..”. do escritor austríaco e Thomas Bernhard descrito no livro Sobrinho de Wittgenstein[3]. Berhardt descreve o seu compromisso, a sua custosa preparação e a confusa cerimônia da entrega de um prêmio que lhe seria conferido por uma Academia de Letras em Viena. Descobre, a duras penas, que ele era a vitima desta academia decadente que estava usando o seu nome associado à sua fama que ele havia conquistado na Holanda. A Academia o usava para promover a instituição letras falida e o seu presidente.
Os grandes artistas da História nunca foram premiados. Se por acaso o foram, logo entraram em esquecimento junto com os prêmios que receberam. Ao contrário Miguel Ângelo ou um Picasso, Shakespear ou Brecht, Mozart ou Cage, ficariam indiferentes, ou até furiosos, se fossem enquadrados num prêmio ao estilo daqueles que se estão sendo distribuídos no âmbito da cultura capitalista contemporânea.
O prêmio do artista consiste em praticar a sua arte. O maior prêmio do artista é ter condições para produzir a sua obra e que nela possa permanecer o pensamento que motivou o seu trabalho. Construir uma obra que permita que este pensamento tenha suporte adequado para que o seu pensamento seja conhecido, circule adequadamente e que permaneça no tempo. O sentido de uma civilização é a permanência do seu pensamento no tempo por meio da sua obra. O prêmio carimba, constrange e limita esta obra do artista, enquadrando-a no pensamento de quem confere este prêmio. O pensamento criador original do artista escorrega e converte-se em trabalho obsoleto e é consumido imediatamente pelo tempo.
É verdade que Leon Battista Alberti (1404—1472) já afirmava, em 1441, que “o artista aspira à fama”. Mas um prêmio não é sinônimo de fama com Alberti entendia esta garantia para com a obra do artista. O prêmio funciona, em geral, exatamente ao contrário do castigo. O prêmio apenas é outro lado da punição e do castigo[4]. O prêmio possui o dom de encobrir e fazer perder a noção de cidadania das Repúblicas Italianas onde o artista era alguém que ia naturalmente até o povo, como qualquer outro cidadão.
O prêmio é a etiqueta e o alfinete nas costas dos lepidópteros para colocá-los no museu das classificações sistemáticas ou das excentricidades. Por meio deste processo a ciência iluminista queria dominar o mundo. Todos sabem no que deu. Se fosse só a guerra da caça aos lepidópteros, além da crueldade, esta fixação pela classificação sistemática permite que, atrás dos caçadores de borboletas, venham legiões de interesseiros, soldados e aproveitadores intermináveis para tirar parte desta divulgação e dos corpos e do cadáver das vítimas.
O artista é dos poucos que não se rendeu a esta lógica dominadora, de poder e de obsolescência programada. Ele é a esperança que, depois das ruínas provocadas pela tecnologia, resultante de uma ciência mal entendida e aplicada, que a espécie humana tenha lucidez e forças suficientes para a busca do “ente no ser” autêntico. O autêntico artista coloca-se como pessoa humana igual a qualquer outra, mas com coragem suficiente para olhar no espelho e ver as obras que orgulham e enobrecem todas as civilizações do passado e que resultaram do impulso criador humano que denominamos, agora, de arte.
O artista é aquele que possui, ainda, lucidez e coragem para fazer frente à ruína da moral e da religião. Marcel Duchamp falou[5] que
“O artista encontra-se face ao mundo fundado sobre o materialismo brutal no qual tudo é avaliado em função do BEM ESTAR MATERIAL e no qual a religião, depois de ter perdido muito espaço, não é mais a grande distribuidora dos valores espirituais.O artista é hoje em dia um estranho reservatório de valores para-espirituais em oposição absoluta com o FUNCIONALISMO diário, pelo qual a Ciência recebe uma admiração cega. Digo cego, porque não creio mais na importância suprema destas soluções científicas que não atingem mais os problemas pessoais do ser humano”
O artista sabe que possui compromisso com o poder da arte que atravessa gerações, séculos e milênios. A arte produz uma “obra” distinta do “trabalho” marcada pela obsolescência[6]. O “trabalho” é recompensado e pago pois vai para a ruína e o lixo. A “obra” permanece como índice do seu tempo.
[1]http://www.lemonde.fr/opinions/article/2009/11/28/laissez-marc-bloch-tranquille-m-sarkozy-par-suzette-bloch-nicolas-offenstadt_1273481_3232.html
[2] http://www.lemonde.fr/politique/article/2009/11/21/pour-catherine-camus-ce-serait-un-symbole-pour-ceux-pour-qui-la-vie-est-tres-dure_1270470_823448.html
[3] BERNHARD, Thomas – O Sobrinho de Wittgenstein – Tradução de Jo´se A. Palma Caetano . Rio de Janeiro : Assírio&Alvin, 2.000 ISBN: 972-37-0603-2
[4] - Evidente que também não se defende a posição do Dr. Benjamin Spock que afirmava que não deveríamos bater em nossos filhos
quando eles se comportassem mal, pois o filho dele se suicidou. Em tudo existem limites e competências a serem compreendidas e
praticadas antes que seja tarde.
[5] . Do texto de uma alocução em inglês pronunciada por Marcel Duchamp, num colóquio organizado em Hofstra em 13 de maio de 1960. Consta em SANOULLET, Michel. DUCHAMP DU SIGNE réunis et présentés par.. Paris Flammarrion, 1991, pp. 236-239
[6] - ARENDT, Hannah (1907-1975). Condition de l’homme moderne. Londres : Calmann-Lévy, 1983