OS ESCRITOS DE FERNANDO CORONA E O
SABER FILOSÓFICO
Neusa Rolita Cavedon
O objetivo desse texto é
aprofundar as análises passíveis de serem tecidas, com base nos postulados
filosóficos de Merleau-Ponty e de Edgar Morin, a partir do conteúdo narrativo
apresentado nos artigos e nas crônicas, de Fernando Corona, publicados em dois
livros.
Fernando CORONA 1895-1979 na sua sala de aula em 1965
Fig. 01 – O intelectual, o professor e o
artista se encontraram na pessoa de Fernando Corona.. Na imagem - fixada por um dos seus estudantes - ele aparece cercado de suas obras, aquelas
realizadas por seus amigos e pelos seus
estudantes enquanto se concentra em ler e registrar, por escrito, o seu
pensamento de intelectual atento ao seu mundo e às suas caminhadas pelas suas
veredas
Em 1969, Fernando Corona
publica sua obra Amêndoas e Mel: crônicas de Espanha. Em carta encaminhada ao
escritor Érico Veríssimo, que se encontrava na Virgínia, nos Estados Unidos da
América, em 1968, Corona questiona acerca da relevância de publicar
determinadas crônicas em livro. Veríssimo aquiesce incentivando o
empreendimento, mas ele e a mulher sugerem outro nome para a obra que Corona
pensava em denominar “Trinta Crônicas de Paz”. Para o casal o melhor título
seria “Amêndoas e Mel”, nome dado a uma das crônicas integrante do livro e que
segundo o casal refletiria de modo mais adequado o espírito espanhol presente
em todo o trabalho. Fernando Corona acata a sugestão dos amigos.
CORONA, Fernando. Amêndoas e mel: crônicas de Espanha. Porto Alegre: Sulina, 1969..
139 p.
Fig. 02 – Esta obra resultou de uma série de
crônicas que Fernando Corona publicou no Correio do Povo narrando uma segunda
viagem de regresso para a Espanha natal e realizada em 1967, já sem cargo e
função e já jubilado em 1965.. Em “Amêndoas e Mel” centrou as
suas observações sobre a cultura
espanhola estando livre do compromisso de levar estudantes que o haviam convidado,
em 1952, para acompanhá-los..
Essa obra busca um resgate
afetivo à terra Natal de Corona e aos seus vínculos familiares, uma vez que as
crônicas selecionadas retratam a Espanha e as emoções compartilhadas entre
parentes e amigos. Mas, as crônicas revelam muito mais, são praticamente uma
descrição etnográfica de lugares, pessoas, modos de vida. O humanismo e o amplo
conhecimento sobre arte de Fernando Corona permeiam os escritos conduzindo o
leitor por uma Espanha detentora de grandes obras e artistas renomados, porém,
sem deixar de exibir as peculiaridades do povo que através da cultura popular
evidencia a alma espanhola.
Os irmão Luís e Fernando no dia 12
de julho de 1967 na Cripta da Catedral de Vitória Espanha diante do capitel
esculpido pelo seu pai Jesus Maria CORONA
Fig. 03 – Fernando Corona realizou uma longa
viagem à sua terra natal após a sua aposentadoria compulsória, ocorrida no dia
22 de novembro de 1965 dia em que completou 70 anos.. Combinou com o seu irmão Luís Corona - representante da Nestlé na
Argentina - encontrarem-se na terra natal. Um dos lugares deste encontro
fraterno foi a cidade de Vitória onde
eles visitaram a obra de seu pai e que
registraram a autoria para a história.
A coerência entre aquilo
que está expresso em cada crônica e o depoimento manifesto no início do livro é
algo a ser destacado:
Tudo
que sei estudei nos livros. Minha universidade foi a rua entre os gentios. Fiz
viagens de estudos para superar meus limitados conhecimentos. O caminho da arte
me fora marcado e por ele segui. (CORONA, 1969, p. 13)
No campo filosófico, essa
postura adotada por Corona vai ao encontro das ideias de Merleau-Ponty[1]. O
filósofo defende que a percepção deve ser aliada ao conhecimento científico, ou
seja, o mundo dos sentidos e a experiência de vida não podem ser desvalorizados
em relação à ciência. Para Merleau-Ponty (2004, p. 7):
O
concreto e o sensível conferem à ciência a tarefa de uma elucidação
interminável, e daí resulta que não se pode considerá-los, à maneira clássica,
como uma simples aparência destinada a ser superada pela inteligência
científica. O fato percebido e, de uma maneira geral, os eventos da história do
mundo não podem ser deduzidos de um certo número de leis que formariam a face
permanente do universo; inversamente, é a lei que é uma expressão aproximada do
evento físico e deixa subsistir a sua opacidade.
As crônicas de Amêndoas e
Mel são qualificadas por Corona como “crônicas de paz”, de uma Espanha em época
pacífica. A primeira crônica expressa sua experiência em visita a caverna de
Altamira, texto que inicia com a defesa de Corona ao direito de cada sujeito discordar
um do outro, inclusive discordando daquilo que ele irá discorrer em seus
artigos: “O direito de pensar é sagrado,
assim como o direito de falar sem ofender” (CORONA, 1969, p. 15). As
pinturas pré-históricas o fazem refletir sobre o endeusamento, a poesia e a paz
presentes na relação do homem paleolítico com os animais selvagens, que caçava
para alimentar a tribo, e que se encontram desenhados em tamanho natural na
pedra calcária há milhares de anos.
[1] Dentro da perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty
(2005) não há a separação sujeito-objeto, isso porque o processo reflexivo é
posterior a experiência pré-reflexiva, uma vez que o mundo sempre esteve
presente, antes mesmo que a reflexão possa vir a acontecer. A percepção não
estaria na mente, mas sim no mundo. O corpo seria o mediador entre as coisas e
o meu eu, entre o meu eu e o outro. A significação dada pelo encontro entre o
meu eu corporal e aquilo que lhe é externo não permite que essa significação
seja exaustiva.
Os professores do IBA-RS homenageia Fernando
CORONA no seu retorno da Viagem a Espanha em 1952 Desenho 72.5 x 57 cm
Acervo da Pinacoteca Barão de
Santo Ângelo IA-UFRGS
Fig. 04 – Fernando Corona esteve na Espanha numa
primeira viagem de retorno graças aos
valores financeiros que o projeto inicial que o Edifício Jaguaribe lhe rendeu e
ao adiantamento oferecido por seu amigo Romeu Pianca proprietário do
empreendimento imobiliário deste Edifício. O seu
filho Luís Fernando – formado no ano anterior pelo Curso Superior de
Arquitetura do IBA-RS - continuou e
completou este projeto .. Os colegas do IBA-RS sentiram certamente falta, em
seu meio, desta dinâmica figura neste ano de 1952. Esta falta deu oportunidade para festejar o seu retorno e lhe conferiram o
desenho coletivo acima. .
As descrições dos espaços
e das circunstâncias históricas, artísticas e culturais são sempre minuciosas,
sendo passado e presente contemplados em analogias ou contrastes que remontam à
dinâmica do ser humano no tempo/espaço. Um excerto da crônica “Castela” permite
a observância da afirmação anterior:
[...] Entardecia
e segui para Wamba, célebre aldeia em decadência, porém carregada de história.
O rei godo Wamba aqui foi coroado na mesma igrejinha onde agora me encontro. O
pórtico é romântico, rústico, arcaico, o côro é gótico, com ojivas achatadas, e
nas paredes ainda se destacam afrescos que lembram os do cristianismo
primitivo. O padre da igreja me acompanha, é moco e muito amável. Leva-me a um
recinto fechado no pátio exterior. Abre uma velhíssima porta reforçada com
cravos de ferro. Entro com êle e vejo as quatro paredes totalmente forradas com
crânios e ossos humanos na espessura de mais de meio metro. Diz-me o bom padre
que são ossamentas dos templários que morreram em luta nos campos castelhanos
defendendo suas ideias. São muitos milhares de restos humanos que fazem a gente
pensar. E penso na ossamenta dos templários. Penso nos templários vivos. Penso
na loucura de Joana, a que amou com paixão a Felipe, o Belo. Penso na Rainha
Isabel, a Católica, que deu mundos novos a Espanha e Portugal. Coloco-me no
espaço e no tempo como vulgar habitante dos tempos remotos. Potentado, jamais
poderia ter sido e muito menos escravo. Seria templário? A sê-lo, minha
ossamenta estaria na Igrejinha de Wamba, ao lado daqueles que lutaram e
morreram por um ideal. Neste domingo nublado, com esporádicas luminosidades de
sol, passo por Castela, a Velha, como um templário, e volto notando que meus
nervos estão endurecidos. (CORONA,
1969, p. 25-26)
Vale aqui as considerações
de cunho fenomenológico expressas por Lopes (2015, p. 186):
Cada
imagem é profundamente mnemónica/evocativa, activando na mente do espectador
experiências prévias que se vão adensando em várias camadas semânticas –
imagens, sons, odores e texturas são recordados, reformulados e reorganizados
no nosso imaginário a partir de relações sinestésicas. Nesse sentido, e apesar
da partilha de pontos de referências sociais, culturais e locais – e do próprio
habitus – cada imagem tem um grau de singularidade para cada sujeito que a
vivencia.
O viés de artista de Corona
aflora em Valladolid, na Semana Santa, durante o trânsito por ruas que revelam
a passagem de mestres da escultura e da literatura:
A
arte me empolga e é precisamente a obra destes gênios da escultura sacra que
agora contemplo e mais me interessa. É aqui que as minhas emoções serão mais
profundas, e me atrevo a afirmar que nada existe no mundo católico com maior
eloquência de religiosidade. (CORONA, 1969, p. 44).
O respeito em relação à
religião e à crença alheias, por parte de Corona, é claramente explicitado nas
crônicas. O livro publicado, em 1969, mostra-se contemporâneo, posto que o
respeito para com as diferenças tem sido um dos motes defendidos, hoje, visando
à inclusão e à dignidade de todos os sujeitos, independentemente de credo,
raça, constituição física, etc., aspirações expressas textualmente em Amêndoas
e Mel. Sobre a visita a Catedral de León, diz Corona (1969, p. 49):
Minha
religião é o amor a todas as coisas deste mundo de Deus. Gosto da humildade com
dignidade para não ser pedinte. Ser fiel a si próprio, respeitando às crenças
dos demais. Senti frio físico no interior do templo, entretanto, meu espírito
estava temperado, talvez eufórico ao contemplar tanta beleza artística criada
pelos homens.
No templo “La Virgen del
Camino”, Corona volta a refletir sobre a humildade, a paz:
No
interior do templo passo a meditar. Não serei eu, pobre mortal, quem poderá
responder a êste desejo de paz e humildade que a humanidade de hoje exige.
Creio, entretanto, que o mundo precisa de reforma radical. Ante a simplicidade
do Santuário de ‘La Virgen del Camino”, talvez os peregrinos encontrem a seara
onde possa existir a solução dos problemas dêste mundo complicado e caótico.
Bastará meditar em silêncio, em paz, e abandonar o egoísmo? Poderá haver um
mundo só no complexo universal? A renúncia e a humildade, por vezes são uma
força indestrutível. Quando vingará? (CORONA, 1969, p. 54)
As mesmas inquietações e
indagações continuam pautando a existência humana, quarenta e oito anos depois
dessa publicação...
Na condição de alguém que
olha para as manifestações populares produzidas para atender aos turistas,
Corona, em Granada, reflete sobre o pagamento solicitado ao visitante para que
a festa tenha sequência. Seria correto comprar a alegria? Corona entende que
tudo tem um custo neste mundo, sendo que gastar com a obtenção de alegria seria
uma excelente compra, posto que a alegria é uma droga que teria por dom curar
todos os males.
Fernando CORONA Busto de Pablo
PICASSO 1958 Acervo da Pinacoteca
Barão de Santo Ângelo IA-UFRGS
Fig. 05 – Fernando Corona interpretou, ao seu
modo, o busto de Pablo Picasso. O intelectual, o professor e o artista Corona
já havia se submetido à disciplina do Cubismo numa interpretação da figura de
Borges de Medeiros[1]. Livre deste paradigma estético retomou a figuração. Porém selecionou,
calou e evidenciou aquilo que esta cabeça de formas dinâmicas e expressivas
sugerias no instante de interpretar, na pedra reconstruída, os traços
fisionômicos coerentes com o seu projeto de prestar a sua própria homenagem a
um dos artistas de maior projeção em todos os tempos.
Ao tecer comentários sobre
as obras e os artistas espanhóis em várias crônicas, cumpre destacar uma
afirmação: “Nada é melhor nem pior, e nada lógico é fazer comparações. O que
devemos aquilatar é a autenticidade. Sempre afirmei que a arte é a expressão
espiritual de cada época” (CORONA, 1969, p. 82). Com essa visão sobre a arte,
Corona interpreta a obra do espanhol Pablo Picasso:
Picasso,
em sua obra, retrata um mundo em frangalhos, de cujos fragmentos e retalhos, harmonicamente
colocados no espaço, sua beleza plástica e seu colorido exuberante exortam um
grito de esperança. Não são seres mutilados os que ele pinta, mas sim sêres
desagregados, o que é muito diferente. Picassianismo significa desagregação de
forma natural, retalhando-a, dando-lhe mais fluido anímico e mais beleza
plástica. (CORONA, 1969, p. 91-92)
Merleau-Ponty (2004, p.
58) faz referência a pintura não como essa sendo uma imitação do mundo, mas,
sob a perspectiva da percepção, como “um mundo por si mesmo”, aquilo que
aparece na tela seria algo que se bastaria em si, haveria uma simbiose entre
forma e conteúdo, configurando-se como inviável a separação entre aquilo que é
expresso e a maneira como é expresso. Forma e conteúdo não seriam
isoláveis.
Zurubarán, Goia, Dali e
Miró também foram contemplados com comentários que colocam à mostra o profundo
conhecimento de Corona sobre arte. Arte que pautou toda a sua vida e que ele,
em Madrid, em face das demoradas visitas aos museus, externa a seguinte
reflexão:
Minha
longa vida foi envolvida, toda ela, em ambiente de arte. Desde criança vivi
rodeado de obras e exemplos de avô e pai, tanto na arquitetura como na
escultura. Na idade do sonho, que é a adolescência, nos estudos, meditei ante
as grandes dificuldades que existem para conseguir materializar a simples cópia
de um objeto através de um desenho. Aprender a ver, não me parecia fácil.
Conseguida essa etapa inicial, verifico na perspectiva do tempo, que para
entender de arte, devemos penetrar no ambiente, observar o clima espiritual e
constatar autenticidades. O estado de graça deverá envolver o artista na
criação da obra. A paixão embargará a idéia. O artista em ação coloca-se ante a
matéria. As mãos recebem, do pensamento, a idéia de como sentir a forma. A obra
então nasce, cresce e vive ante os olhos de seu criador. Surge a dúvida. Será
que a obra expressa em seu conteúdo alguma fôrça espiritual? O tempo, no meio
ambiente, nos dará a resposta. Ao realizar a obra o artista autêntico não pensa
em agradar os demais. Talvez, por necessidade biológica, deseje expressar sua
mensagem prenhe no arcano e louca por nascer. A obra deverá ser e ter a
expressão de sua inquietação criadora, como intérprete que é de seu estado
espiritual, brotado de dentro para fora. (CORONA, 1969, p. 99)
A paixão propalada na elaboração
de uma obra de arte, no caso de Corona, parece difundir-se por todos os campos
de sua vida. Todas as apreciações que ele elabora seja em relação à
arquitetura, à escultura, à natureza, às manifestações culturais populares, aos
aspectos peculiares das cidades, aos tipos populares e eruditos que habitam e
ou habitaram os diferentes lugares, em todas as situações, ele demonstra uma
imensa afetividade, um deixar-se envolver sem preconceitos, procurando
compreender cada manifestação, embebendo-se demoradamente da beleza de cada
momento.
Seria aquilo que
Merleau-Ponty (2004) teorizou como sendo o homem investido nas coisas e as
coisas investidas no homem. Assim, as
coisas não se configuram como objetos neutros a serem contemplados pelo ser
humano, as coisas simbolizam, remetem a certas condutas, ocasionam sentimentos
favoráveis ou desfavoráveis, dizem dos gostos, do caráter, dos posicionamentos
assumidos, isso se revela na escolha do sujeito face aos objetos, nas cores,
nos lugares por onde opta por passear. Não há como o homem se distanciar das
coisas, cada objeto fala ao seu corpo e a sua vida.
É possível aventar que a
viagem a Espanha tinha um caráter afetivo e talvez por essa razão a emoção
tenha aflorado de maneira tão significativa nas crônicas, mas de qualquer
maneira essa exposição da afetividade mostra o homem por trás do artista,
alguém sem medo de manifestar seus sentimentos pela via da escrita e para além
das obras de arte e de arquitetura. Isso em uma época em que a poesia, o
humanismo, nas sociedades ocidentais, passou a ser relegada em detrimento do
engrandecimento da técnica e das questões econômicas. O episódio - narrado em
crônica - em que Corona reencontra depois de quarenta anos Felipe Ruiz, seu
amigo de infância, evidencia momentos em que lágrimas brotaram no rosto de
Corona. Primeiro, ao abraçar o amigo depois de tanto tempo; e, mais tarde,
quando solicita à Felipe um pouco da terra de Santander - cidade onde nasceu -
para trazer para o Brasil. Aqui no Brasil era onde ele desejava morrer, terra
que o acolheu, onde casou, teve filhos e netos. As lágrimas retornaram quando
Felipe entrega conchas para Corona e não a terra como ele havia pedido. Felipe
alega que a terra estava suja de sangue e as conchas estavam puras, limpas e
banhadas de sol. A narrativa revela a poesia decorrente do simbolismo.
“Amêndoas e Mel”
configura-se como uma obra de crônicas eivadas de poesia, que refletem o
humanismo do autor, o seu entusiasmo diante de uma dança flamenca, sua
estupefação diante de uma catedral, sua consciência da limitação do homem
diante da grandeza do mar, sua capacidade de ouvir com atenção o anedotário
andaluz, seu conhecimento sobre arte mediante a observância dos detalhes que se
descortinam em cada obra, seu caminhar atento pelas ruas saboreando as luzes,
os odores, os personagens que cruzam pelo caminho. Ler essas crônicas é fazer
um passeio pela Espanha de uma determinada época, resgatando sua história, sua
arte, suas mazelas, enfim, é desfrutar daquilo que Morin (1998)[2]
defende como sendo preciso estar em conjunção e não em separado: Amor, Poesia e
Sabedoria.
[1] Borges de
MEDEIROS cubista http://www.ufrgs.br/acervoartes/obras/escultura/escultura/fernando-corona-6/view
[2] Edgar Morin
(s/d) desenvolveu a noção de paradigma da complexidade onde ordem e desordem,
no universo dos fenômenos, aparecem de maneira una, complementar, concorrente e
antagônica.
CORONA, Fernando. Caminhada nas artes: 1940-76. Porto Alegre: Universidade Federal do
Rio Grande do Sul/Instituto Estadual do Livro, 1977, 241 p
Fig. 06 – As crônicas que Fernando Corona publicou no Correio do Povo - ao longo do tempo em que ele “DEIXOU de SER ESCULTOR para FORMAR ESCULTORES”
- foram publicados dois anos antes de seu desaparecimento. Uma das primeiras apreciações (pp.21 e 22) é relativa à exposição das
obras que Iberê Camargo realizou no atual Palácio do Piratini, em 1944.
Desafiador Corona escreveu “tenho certeza
que a maioria dos visitantes, leigos ou não na matéria, achará que Iberê
Camargo é maluco”
Em 1977, Corona publica
“Caminhada nas artes: 1940-76”, livro de crônicas e artigos direcionados para
as artes. Embora mais específica, essa obra não deixa de mostrar as
características do escritor, sua sensibilidade, humanismo, conhecimento,
capacidade de contextualizar a arte no tempo e espaço. Corona instiga os jovens
estudantes de Artes:
Desejando
estimular e aconselhar a mocidade estudiosa, diria que não é possível fazer uma
obra de arte sem pensar muito, e pensar bem na pátria pequena que é
naturalmente a província. Ler sua história, a formação de sua nacionalidade,
seus hábitos, costumes e cânticos. Sentir o pensamento de seus filósofos,
poetas e escritores. Não fazer arte pela arte e sim a inspirada no povo, de
acordo com o conceito de cada artista, senti-la dentro de si na inquietação de
suas ânsias ou na expressão de suas tristezas e amores.
(CORONA, 1977, p. 63)
O artista conectado com o
seu tempo e espaço define o que é arte: “Arte é, sobretudo, criação. É
mensagem. É libertação. É expressão íntima de si mesmo ante a vida
contemporânea” (CORONA, 1977, p. 79). E responde para onde caminha a arte:
Dos
cubistas picassianos até os concretistas e os tachistas – estes estão ausentes
– o mundo desmorona. Os cubistas desagregam a forma, fragmentando-a. Os
abstracionistas organizam o espaço com manchas. Os surrealistas sonham e pintam
suas loucuras. Os concretistas fazem equações matemáticas e geométricas com
pontos, linhas e planos no espaço. Os tachistas atiram na tela pingos de tinta,
deitam a tela no chão e os animais domésticos, passando por cima, completam a arte?
Quem poderá responder? Tudo não parece uma contradição ante a ciência que
avança? Uma pintura acadêmica a mim faz muito mal quando vejo que seu autor não
tem 40 anos, o que confirma sua falta de talento criador, com espírito de
pintor de domingos. Gosto da arte contemporânea, figurativa ou não, pela força
criadora que encerra, arte que parece de loucos. E quem sabe? Não parece que o
nosso mundo marcha para um caos? Sou um mísero mortal arrastado pela corrente
porque teimo em querer ser um homem do meu tempo. Se eu tivesse 20 anos estaria
pintando ou esculpindo com essa mocidade que faz o que bem entende, caminho
seguro para a libertação de si mesmo. (CORONA, 1977, p. 79-80)
Fernando Corona em várias
crônicas mostra-se um defensor da liberdade do artista, uma arte que deve
contemplar a ética enquanto possibilidade de entendimento entre os homens.
Todavia, ele advoga que nem sempre aquilo que foi experimentado interiormente
pelo artista, e que uma vez materializado no desenho e na pintura, acaba sendo
compreendido. Ao expor a sua verdade interior por meio da arte, o sujeito se
coloca em diálogo com outras verdades que podem ser diferentes e até mesmo
contraditórias. Corona (1977, p. 91) afirma: “Acontece que a vida é feita de valores controvertidos, muitas vezes
condenados e a longo prazo aceitos, tornando-se clássicos no amadurecimento”.
Fig. 07 – Fernando Corona como professor
acompanhava os experimentos dos seus estudantes e fixava estes momentos por
meio de imagens fotográficas com apontamentos e eventuais avaliações. Na imagem o estudante Luiz Carlos PINTO MACIEL (1931-2011)[1] que era líder acadêmico,
foi para Brasília em 1962 junto com Fernando Corona onde conseguiram a
federalização do IB-RS. Luiz Carlos tornou-se diretor do IA-UFRGS e foi
secretário do Reitor da UFRGS. No meio cultural de Porto Alegre MACIEL
tornou-se conhecido por reinventar prato da culinária sul-rio-grandense e
sufocados pela onipresença do churrasco.
A mensagem que emerge é a da necessidade de o artista
buscar a sua verdade independentemente de uma aceitação imediata. O tempo vai
se encarregar de eleger aquela arte como relevante caso ela realmente seja
reveladora de algo original e merecedor de reverência em função da expressão
talentosa de seu criador
Fig. 08 – Outra página dos registros
fotográficos de Fernando Corona como
professor acompanhava os experimentos dos seus estudantes.. Aqui o registro das pesquisas de Carlos Tenius e do qual será um dos
defensores do MONUMENTO aos AÇORIANOS e do qual Fernando Corona publicou um
memorial descritivo convencendo as autoridades a construir um dos maiores
monumentos de Porto Alegre.
Corona também escreve
crônicas enaltecendo artistas que foram seus alunos e que granjearam destaque
na produção de obras ao longo dos anos. O mestre dizia ter aberto mão da
possibilidade de fazer esculturas para fazer escultores. Então, receber
notícias de seus alunos, como Sônia Ebling, de Paris, contando sobre as
exposições realizadas, enchia o professor de entusiasmo o que acabou por
merecer uma crônica escrita em 1964. Neste texto, Corona enfatiza o contato
ininterrupto com a discípula que mesmo distante (em época que não havia
Internet) pedia conselhos e o mantinha a par de suas realizações. A crônica
finalizada com a seguinte frase nos dá a dimensão da felicidade experimentada
através desse diálogo mestre/discípula: “Exemplos
como os de Sônia Ebling esculpem, no coração da gente, a melhor obra de arte
que existe: vida”. (CORONA, 1977, p. 121)
Fig. 09 – O Fernando Corona narra que encontrou
Sônia EBLING (1926-2006) debilitada numa farmácia. Aconselhou que o melhor
remédio é ela fazer arte. Convenceu-a a
se dedicar à Escultura e ela tornou-se uma das escultoras brasileiras de
maior projeção. No registro fotográfico de Fernando Corona está obra com que
Sonia concorreu e foi aceita, em 1951, na I BIENAL de SÃO PAULO iniciando uma
carreira nacional e internacional. Conselho semelhante Corona deu ao Érico
Verissimo que atendia num balcão de uma farmácia em Cruz Alta.
Mas, ao mestre cabe não só
enaltecer aqueles que se destacam, muitas vezes compete ao professor apontar
falhas de modo a propiciar o crescimento daqueles que mesmo possuindo potencial
ainda não atingiram o nível de excelência. E essa é uma tarefa ingrata, nem
sempre compreendida pelos neófitos, a sinceridade pode magoar o autor da obra,
mas também fere o sujeito instado a manifestar a sua opinião. Do lado desse
último, a briga instala-se entre dizer a verdade mesmo que possa ferir o
interlocutor ou omitir as críticas e de certa maneira colocar em xeque tudo que
ensinou ao longo de sua jornada como mestre. O dilema está devidamente descrito
na crônica publicada em 1973 sobre a exposição de Elizabeth Nuñez. Corona,
instigado a comentar o trabalho de Elizabeth, tece críticas a pintura realizada
pela artista e percebe ao se despedir que ela tinha lágrimas nos olhos, que a
sinceridade expressa de forma construtiva gerara dor profunda na alma da
artista. Talvez a pintora antes de ler a crônica não tenha percebido a
dificuldade do velho mestre em expor sua opinião, o sofrimento experimentado
por alguém sincero, sensível, que exulta de felicidade com os êxitos de seus
pupilos e que tem a humildade de se desculpar pela crítica mais contundente
pronunciada: “Nesta noite, no Ponto das
Artes, fui cruel com a arte de Beth Nuñez. Peço perdão a Beth pela minha
incorrigível, embora sincera, atitude nas respostas dadas às perguntas que me
foram feitas. [...] Sou nada mais que um homem com graves defeitos que não
posso corrigir por ser apenas um homem”. (CORONA, 1977, p. 220).
Waldeni ELIAS O Julgamento In Revista do Globo,
Ano XXIX 17.05.1957 p. 85 Salão PAN-AMERICANO de ARTES
Fig. 10 – O caráter forte e decidido de Waldeni
ELIAS (1931-2010) encontrou em Fernando
Corona um intelectual, um professor e um artista a altura para compreender as
suas aspirações. Encontrou um mestre incorruptível e
alguém que sabia das perdas decorrentes
da sua escolha pessoal de seguir a carreira de artes. Elias foi fiel a esta
escolha até o final de sua existência seguindo o caminho do seu mestre.
Em outro texto Corona
destaca a pintura de W. Elias[1],
um dos integrantes do grupo de cinco artistas denominado Bode Preto, que sob
sua ótica era o mais talentoso. Corona dizia que na ocasião já levava uma vida
mais reclusa, todavia, ao receber o convite para comparecer à mostra de Elias,
não podia furtar-se de comparecer a tal evento, pois segundo suas palavras:
“[...] não podia negar um abraço a um
artista que vi nascer no cadinho da nossa escola, onde tantos se criaram como
se filhos meus fossem”. (CORONA, 1977, p. 197)
Fig. 11 – O GRUPO BODE PRETO preludiou, em
1958, as manifestações da contra cultura das décadas de 1960 e 1970. Era uma
expressão das sucessivas rebeliões da juventude e índice das profundas mudanças
sociais, políticas e econômicas que tomaram conta posteriormente das ARTES. Este GRUPO encontrou em Fernando
Corona um interlocutor competente que os escutava como artista, intelectual e professor que sabia, como
Sócrates, que algo novo e inédito fecundava estes cérebros, sentimentos e
vontades e se plasmava nesta nova geração aguardando o momento do parto.
As crônicas de Corona publicadas
em Amêndoas e Mel: crônicas de Espanha e em Caminhada nas Artes: 1940-76, vão
ao encontro das teorizações do filósofo e sociólogo Edgar Morin no livro Amor,
Poesia e Sabedoria. Os textos que integram o trabalho de Morin evidenciam a
complementariedade dos três pilares da existência humana. O amor não pode ser
pensado de maneira isolada da loucura e da sabedoria, há uma interpenetração
mútua. A poesia - longe de ser somente uma expressão literária – permite ao
sujeito vivenciar a comunhão, a participação, a admiração, o amor, extrapolando
a razão, permite que se navegue através da loucura e da sabedoria
ultrapassando-as.
Morin (1998) afirma que
qualquer que seja a cultura, nela será possível encontrar duas linguagens, uma
delas calcada na técnica, na racionalidade, na prática e no empírico, portanto,
a que enfatiza a lógica; a outra, focada no simbólico, no mito, na magia, a que
busca fazer emergir a verdade subjetiva. Essas linguagens ora se misturam, ora
se separam, ora se justapõem. A linguagem lógica representa a prosa e a
linguagem simbólica representa a poesia.
O leitor ao navegar pelas
páginas das duas obras publicadas por Corona experimenta essa
complementariedade. Na verdade, os textos são artigos e crônicas produzidos com
base na razão, na sabedoria obtida pelo conhecimento profundo das artes, mas as
narrativas não estão desprovidas de afetividade. Como teoriza Morin
inteligência e afetividade são correlatas, o homem não é só homo sapiens, ele é também homo demens. A desordem interior do
sujeito decorrente da existência desses dois polos é que acaba por possibilitar
a invenção e a criação. A sociedade contemporânea tende a dicotomizar, a
separar a prosa da poesia. Assim, o trabalho configura-se como atrelado a
prosa, a razão, e o lazer estaria vinculado à poesia, ao simbólico. Nem sempre
essa foi a configuração social vigente. Em muitas sociedades, o trabalho foi e
é executado mediante cânticos e manifestações de exaltação ao simbólico.
Em outra obra, Morin
(2004) ao discorrer sobre a literatura, amplia suas teorizações para o campo da
arte, da música e da filosofia considerando esses fazeres como integrantes da
cultura humanista. Em suas palavras:
[...]
O desenvolvimento da cultura “santifica” a cultura especializada, a técnica
ameaça e rechaça a cultura humanista; contudo, a cultura humanista é
necessária, é vital também para os cientistas, técnicos, políticos, enfim, para
todos. Em todas as obras-primas, eu repito, há uma riqueza multidimensional de
sensibilidade, de conhecimento e, de pensamento. E não unicamente na
literatura, na poesia; não unicamente na filosofia por exemplo. Tomemos por
exemplo, o afresco de Miguel Ângelo, na Capela Sistina em Roma, onde a mão do
Criador divino desperta Adão quase tocando a sua mão; é bastante conhecido e nele
se pode ver uma coisa curiosa: pode-se ver que o outro braço de Deus abraça não
um anjo, mas uma pessoa feminina. Com isso, Miguel Ângelo queria exprimir uma
ideia muito subversiva de que a criação necessita da criação de todos,
necessita não unicamente do princípio masculino, mas também, do feminino.
(MORIN, 2004, p. 25)
Corona consegue unir prosa
e poesia em suas crônicas e artigos, ele resgata a interpenetração das duas
linguagens na época em que a ciência, a razão, deveriam ser isoladas do
humanismo, da poesia. O professor, escultor, arquiteto, escritor, antevê os
postulados difundidos décadas depois: “poesia-prosa constituem, portanto, o
tecido de nossa vida”. (MORIN, 1998, p. 36)
Corona deixou registrados
seus valores: paz, liberdade, amor, afetividade. Em várias crônicas e artigos,
há o lembrete sobre a relevância de se considerar o tempo e o ambiente onde as
produções acontecem, essa postura traz a alteridade como norteadora para a
compreensão dos sujeitos e daquilo que eles criam. Novamente encontra-se em
Morin respaldo para tal posicionamento:
Devemos
compreender que os seres humanos são seres instáveis, nos quais há a
possibilidade do melhor e do pior, uns possuindo melhores possibilidades do que
outros. Devemos compreender também que os seres possuem múltiplas
personalidades potenciais e que tudo depende dos acontecimentos, dos acidentes
que ocorrem com eles e que podem liberar alguns deles.
(MORIN, 1998, p. 61)
E mais:
Refletir
é ensaiar, e uma vez que foi possível contextualizar, compreender, ver qual
pode ser o sentido, quais podem ser as perspectivas. Mais uma vez, para mim, a
linha de força de uma sabedoria moderna consistiria na compreensão.
(MORIN, 1998, p. 64)
Fig. 12 – Fernando Corona apresentou e
defendeu, em 1938, a sua Tese de Cátedra
como primeiro professor da cadeira de Escultura num Curso Superior do
Rio Grande do Sul. Sem orientador, sem um programa de
pós-graduação e com a revisão
ortográfica de Walter SPALDING este texto não encontrou ninguém que o
questionasse. Naquela época a
apresentação e a defesa da tese garantiam a cátedra e o título de doutor ao
proponente aprovado.
Corona em seus escritos
mostrou-se integralmente. Ele permitiu a observância da tríade amor, poesia e
sabedoria seja diante de uma obra arquitetônica descrita em detalhes sob o
ponto de vista do conhecimento técnico, seja sob a admiração resultante da
emoção de vislumbrar o belo; ao proferir palavras de incentivo e
aconselhamento, aos seus alunos, fruto de seu saber, porém perpassadas por manifestações de apreço e afeto; seja
trilhando as ruas das cidades espanholas e observando obras e populares
descritos em detalhes obtidos não só na convivência, mas igualmente em
pesquisas realizadas em livros e documentos, cujas caminhadas foram enaltecidas
pelo compartilhar da companhia carinhosa do irmão; seja no carinho e afeto
direcionado à Sônia Ebling como também
no pedido de desculpas pela crueldade das críticas entabuladas às pinturas de
Elizabeth Nuñez. É difícil não encontrar essa interconexão em cada texto
redigido. A síntese desse olhar integral sobre a vida ganhou síntese nas
teorias de Morin (1998) que serão transcritas com o objetivo de, ainda que de
modo parcial, entender Fernando Corona, escritor, acima de tudo um ser humano
que foi capaz de captar a essência da vida que é o amor.
A
sabedoria deve saber que contém em si uma contradição; é inteiramente loucura
viver muito sabiamente. Devemos reconhecer que na loucura, que é o amor, há a
sabedoria do amor. No amor da sabedoria, ou da filosofia, falta amor. O
importante na vida é o amor. Com todos os perigos que ele contém.
Mas
isso não é o suficiente. Se o mal que sofremos e fazemos sofrer reside na
incompreensão do outro, na autojustificação, na mentira a si próprio (self
deception), então o caminho da ética – e é aí que conduzirei a sabedoria –
reside no esforço da compreensão e não na condenação, no auto-exame que
comporta a autocrítica e que se esforça por reconhecer a mentira para si
próprio. (MORIN, 1998, p. 66-67)
Para finalizar, as
palavras de Corona redigidas na crônica “Estado de Espírito de um Homem
Sentimental” revelam o amor e a loucura entremeados pela sabedoria. Nesse
texto, Corona expressa sua tristeza pela passagem de sua esposa Benevenuta, a
Venuta, como ele a chamava. Acometida por problemas cardíacos, ela foi
internada no Instituto de Cardiologia e contou com a presença atenciosa do
marido, que sentia a vida da mulher se esvair. O Natal daquele ano seria triste
e o maior pesar ainda aconteceria três dias após quando ela veio a falecer.
Fig. 13 – Fernando Corona atravessou as sete
primeiras décadas do século XX. Décadas de profundas mudanças técnicas, sociais
e estéticas O pensador, o professor e o artista,
de um lado, atualizavam de forma permanente a sua INTELIGÊNCIA. Em contrapartida
a sua PESQUISA ESTÉTICA interagia e respondia ao repertório da sociedade, do
tempo e especialmente do lugar que ele escolhera por livre opção. Assim ele pode
escrever, como epígrafe do seu diário. “CAMINHADA DE FERNANDO CORONA DONDE SE CONTA DE COMO E PORQUE SAI DE CASA E AQUI FIQUEI PARA SEMPRE.
NASCÍ EM UM LUGAR E RENASCÍ EM OUTRO ONDE ENCONTREI AMOR”.
[clique sobre o gráfico para aumentar ou copiá-lo]
No ano de 1972, Corona
havia sido convidado para esculpir a imagem de Nossa Senhora do Líbano na
Igreja Maronita em Porto Alegre, na ocasião com a esposa já debilitada e
consciente do esforço que tal empreendimento demandaria para alguém com idade
avançada, ele recusou o convite. Todavia, a morte da esposa o faz repensar a
decisão tomada e essa mudança merece ser lida através da narrativa do próprio
Corona:
Recebo
a visita da querida criatura Neusa Mattos na solidão do meu lar. Vinha-me dar
os pêsames e sentir comigo a perda irreparável da mulher que tanto amei. Neusa
falou sobre a imagem da igreja maronita. Aconselhou-me a superar minha aflição
com esse trabalho importante. Aleguei meu afastamento de mais de quarenta anos
em obras dessa natureza. Pensei na minha idade e nas dificuldades que teria de
subir em um andaime. A imagem de Nossa Senhora do Líbano seria de três metros
de altura, o que me assustava deveras.
Pensei,
ao mesmo tempo, que o amor superaria minhas precárias condições físicas, por
ser mais forte. Sei que minha mente me parece clara e o pensamento límpido, sem
nenhuma vaidade. As dores musculares que poderia sentir, passariam a segundo
plano por serem recuperáveis.
Aceitei
o encargo. Saímos, Neusa e eu, a caminho da igreja maronita. Levei comigo um
exemplar de Amêndoas e Mel, com a devida dedicatória ao padre Rosendo Atik. No
instante que o bom padre tomou conhecimento da minha resolução, notei em seus
olhos negros uma imagem de esperança, talvez uma súplica a Nossa Senhora do
Líbano para a realização do seu sonho.
Como
agora vivo na solidão do meu lar envolvido na dor do amor, meu propósito era o
de reproduzir no rosto da imagem características juvenis da minha amada mulher.
Se a minha proposta não fosse aceita, não a faria. Não haveria dinheiro que
pagasse o meu trabalho, comprometendo-me a esculpi-lo sem remuneração alguma,
fazendo-a em homenagem à minha santa companheira, a quem tanto amei.
(CORONA, 1977, p. 227-228)
Os desenhos foram
entregues ao padre e a obra teve início em pleno mês de junho, quando o inverno
gaúcho se faz sentir de modo impiedoso. O frio, a umidade, a idade do escultor,
nada disso foi impeditivo para a consecução da obra que reverenciava o amor da
sua vida. O sofrimento e o reconhecimento narrados por Corona dão a dimensão da
epopeia realizada.
Fig. 14 – A PESQUISA ESTÉTICA de Fernando Corona culminou com
a criação da ESCULTURA cujo tema é a IMAGEM de NOSSA SENHORA do LIBANO para
a fachada da igreja maronita de Porto
Alegre. Nesta obra FERNANDO CORONA materializa o seu
lema “NASCÍ EM UM LUGAR E RENASCÍ EM
OUTRO ONDE ENCONTREI AMOR”. Este AMOR ele representa na sua esposa BENVENUTA ROSSI CORONA, mãe de
seus três filhos e que ele perdeu pouco antes de aceitar o desafio de realizar
esta obra em pleno inverno. O projeto de templo é de Emíl Achutti BERED[1] um dos seus alunos no
Curso Superior de Arquitetura do IBA-RS
"Começou
a luta contra a umidade e o frio. Pés e mãos endureciam. O sistema muscular
adormecido pela inércia, a friagem e a gripe me causaram desespero. Mesmo assim
lutei até o fim, embora o mês de julho fosse meu inimigo.
No
dia 7 de agosto, dei por finda a tarefa, após 71h30min de trabalho. Uma senhora,
ao passar, fez-me um grande elogio, dizendo:
- É
a primeira vez que vejo uma santa com cara de gente.
Outra
pessoa amiga me diz:
- Os pés da imagem parecem de passarinho, a
imagem está em ascensão.
[...]
Nossa
Senhora do Líbano, é para mim, santa Venuta, a mulher que tanto amei, fazendo
de mim um homem feliz. (CORONA, 1977, p. 228)
Depois dessa narrativa
fica evidente amor, poesia e sabedoria no pensar e no fazer de Fernando Corona,
afinal, a imagem de Nossa Senhora do Líbano foi esculpida mediante a loucura, o
amor e a sabedoria entremeados na figura de um escultor quase octogenário, homo sapiens e homo demens.
Referências:
CORONA, Fernando. Amêndoas e mel: crônicas de Espanha.
Porto Alegre: Sulina, 1969.
---------. Caminhada nas artes: 1940-76. Porto
Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Instituto Estadual do Livro,
1977.
LOPES, Maria Inês Afonso. Sensory turn. Quando o sujeito se torna o
centro da História da Arte. Revista de
História da Arte, n.º 12, Lisboa: IHA-FCSH/NOVA, 2015, pp. 177-189.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
-------- Phenomenology of
perception. New York: Routledge, 2005.
MORIN, Edgar. Inclusão:
verdade da literatura. In: FALCI, Nurimar Maria e RÖSING, Tania M. K. org. Edgar Morin: religando fronteiras. Passo
Fundo: UPF, 2004.
-------- Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1998.
-------- Ciência com consciência. Portugal:
Europa-América, s/d.
Artigo elaborado em setembro de 2017 e
apresentado
no dia 14 de setembro de 2017 por
Neusa Rolita Cavedon
Ernesto Frederico SCHEFFEL (1927-2015)
e FERNANDO CORONA
[1] Emil Achutti
BERED http://www.au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/110/pionerismo-modernista-nos-pampas-23526-1.aspx
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