sábado, 20 de fevereiro de 2016

154– LOGÍSTICA em ESTUDOS de ARTE: ruptura da representação

Rupturas, interrupções, síncopes na   representação   da   pintura[1]


 MARIN, Louis «Rupturas, interrupções, síncopes na representação da pintura» in De la Représentation. Paris : Gallimard 1994. pp. 364- 376

    Eu gostaria de entender os três termos do título do presente estudo como tantas outras variações sobre  elipses, silêncios e brancos que esses temas nos fornecem. Em ruptura  eu insistiria sobre a «enfonçure[2]» como se dizia no século XVII, a quebra, o corte, a cesura que  dilaceraria um contínuo de espaço e de tempo, uma coerência semântica e lógica, até uma coesão sintática, em um nível, ou num ordem determinada. A ruptura também pode ser marca violento de um limite, o traçado vivo, se assim seja possível falar, de uma borda que rompe uma forma exposta ou de uma figura exibida.



[1] - Texto aparecido em Elipse, blancs, silences. Atas do colóquio da Cicada – Centre Inter-Crítica des Artes du Domaine Anglophone (Pau, Université de Pau e des Pays de l’Adour, Departamento de Estudos ingleses e norte americanos) 1992, p. 77-86

[2]Enfonçure = Cavidade; fundo de um tonel. (Dicionário Francês – Português, Corrêa a Steinber. Rio de Janeiro : FENAME, 1982


Fig. 01 - MUNCH Edvard (1863—1944)  O Grito (1893) - têmpera  91 x 73.5 cm - Museu da Noruega

A ruptura pode também algumas vezes ser o equivalente visual de certos silêncios como no famoso quadro de E. Munch, o Grito (Fig.01)[1], silêncio superagudo de uma soma de toda acuidade auditiva ou do Massacre dos Inocentes de Poussin (Fig.02)[2] no museu Chantilly.
Fig. 02  POUSSIN Nicolas (1594-1665)-_Massacre_des_Inocentes 

A anamorfose[1] do crânio nos embaixadores de Holbein (Fig.03)[2] seria um exemplo «clássico» da ruptura ao mesmo tempo quanto à coerência semântica e a coerência sintática do quadro, mas também no dispositivo que regula a captação visual.



[1] - Anamorfose (ótica) Determinação de uma imagem formada por um sistema ótico cuja ampliação longitudinal é diferente da ampliação transversal ( Dicionário Aurélio Eletrônico)
Fig. 03 –  HOLBEIN Hans -Os EMBAIXADORES

   De outro lado a interrupção insistiria sobre  a abertura numa continuidade ou numa continuação, de um desvio, de um intervalo, distância, espaçamento. Diferância de uma espera ou retardamento e também sobre os efeitos de um desvio para o espectador ou ouvinte. A interrupção é num tratado Pseudo-Lógico uma figura característica do sublime e Fontanier no início do século XIX anotava que « a interrupção deixa de repente, pelo efeito de uma emoção muito viva, uma frase já começada, para começar outra completamente diferente, ou para não retomar a primeira senão após ter entrecortado de expressões que lhe são gramaticalmente estranhas». Ele evoca agora, o mais próximo da interrupção, a suspensão e o parênteses que fariam reencontrar em retórica – os efeitos de rarefação discursiva caracterizando a elipse. Assim o momento narrativo que o quadro de Poussin, Os Pastores da Arcádia[1] representa no qual a corrida ofegante das figuras é medida pela sua interrupção espantada diante do achado macabro da cabeça de um morto sobre o túmulo, enquanto um deus-rio adormecido, no primeiro plano, alegoriza a continuidade temporal assim interrompida.



[1]  POUSSIN Nicolas 1594-1668 Pastores na Arcadia c 1638 https://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolas_Poussin

Fig. 04  POUSSIN Nicolas 1594-1665 Pastores na Arcádia - c. 1638

Assim o pequeno quadro de Paul Klee, Ad Marginem onde espaçamento e diferança  de interrupção expõe-se ao olhar pela rejeição das bordas, para sua margem, das figuras pelo vibrante sol vermelho central.
    O termo síncope quando se quiser tocar e fazer tocar a tensão semântica que anima a noção pois aí se conjugam estranhamente o corpo interrompido e com ele a consciência de si, diminuição súbita e momentânea da ação do coração com a interrupção da respiração, das sensações e dos movimentos voluntários – são as síncopes de Montaigne e Rousseau quando os seus acidentes tornam-se  ocasiões misteriosas para um e outro  descobriram a felicidade nas fronteiras da morte:  síncope também da escrita interrompida.  (a supressão de uma letra ou de uma sílaba no meio de uma palavra), mas onde a voz retoma a interrupção e apaga-gai(e)té {alegria} – para não deixar que a silenciosa cicatriz gráfica de  um acento circunflexo – (gaîté) – síncope enfim que uma música interrompida e retomada (ligação de última nota de um compasso com a primeira nota do compasso seguinte para fazer uma única nota ou ainda duas notas escutadas sucessivamente, onde a segunda possui valor dobrado da primeira) donde o ritmo, uma repetição que seria a intensificação simultâneo de uma presença e de uma ausência como o fascinante Autumn Rytm de Jackson Pollock, ou de uma outra maneira, as geometrias rigorosas, fórmulas coloridas do Gran Cairo de Frank Stella[1].  da série dos «Concentric Squares»(Fig.05)[2].
Fig. 05  ESTELLA  Frank Concentric Squares [1].

    Rupturas, interrupções, síncopes, variando em elipse, silêncio, branco.  Mas na representação da pintura. Também na questão que me coloquei: - o que é uma elipse, um branco , um silêncio em pintura ? Não nos esqueçamos de retrucar: - ¿ que é uma ruptura, uma interrupção, uma síncope nesse campo?
   Para dizer a verdade, com o termo «branco» que é um dos «títulos» do encontro, nós entramos sem dificuldade no visual, e no final de contas, as três noções ruptura, interrupção, síncope, para além de algumas ilustrações pictóricas possíveis que eu venho evocar, poderiam revelar-se mais pensáveis teoricamente do que variações sobre os brancos da representação da pintura ou ainda como as opacidades do branco na pintura.
  No século XVII, idade de ouro da representação, o branco era, antes de tudo, como se dizia, a cor universal, pois é a cor «complexa» da luz, que o prisma vai dividir em múltiplas cores particulares, prisma sobre o qual Nicole irá escrever um pequeno ensaio moral. Prisma que Poussin nos seu auto-retrato do Louvre traz no dedo mínimo sob a forma de um diamante lapidado em pirâmide (Fig.06), que ele substitui com muito precisão com o livro intitulado Da Luz e Cor que ele tem na mão no seu Auto-retrato do Museu de Berlim. O branco, podemos dizê-lo, uma cor transcendental, pois que ela qualifica a condição da possibilidade de toda a representação:  a luz.
Fig. 06  POUSSIN Nicolas ( 1594-1665) AUTORRETRATO com anel em pirâmide
[Clique sobre a figura para ampliar e ver] 
   Poussin na sua carta-testamento para M. de Cahmray datada de 01 de março de 1665 ( Ele morreu no dia 19 de novembro) escrevia sob o título dos «Princípios que todo homem dotado de razão pode aprender» : «Não há nada visível sem luz» : o branco, que é a cor da luz,  é a condição invisível da possibilidade do visível, anterior logicamente, a «tudo que é visível sob o sol» que é, segundo a famosa definição poussiniana  da pintura, o objeto da representação da pintura («tudo o que se vê sob o sol» ) cor do sol, se o sol pudesse ser pintado diretamente como uma coisa ou objeto do mundo. «O sol e nem a morte podem ser olhados fixamente» escrevia Rochefoucauld na mesma época.
  O segundo princípio, formulado por Poussin, enuncia um segundo branco da representação pintada: «Não há nada visível sem um meio transparente»; como contraponto eu leio a definição, que Aristóteles dá ao transparente e ao diáfano  «Eu entendo que aquilo,  ainda que bem visível, não é visível por si mesmo. Mas coma a ajuda de uma cor diferente. Assim são o ar e a água. » Também seria o branco, cor sem cor da transparência;  o branco cor invisível em si, do ar ou da água, invisível que só uma cor «diferente» torna visível. O diáfano para Poussin é o meio do visível.
   - Qual é esse meio? Poussin o anuncia na definição da pintura que eu evocava um pouco antes: « é uma imitação [uma representação] feita com linhas e cores em alguma superfície de tudo aquilo que se vê debaixo do sol; sua finalidade é o deleite» Toda a representação da pintura é assim compreendida – contínua ou fechada -  entre o plano transparente da representação que o olhar atravessa (dia – phanès) para ir recolher (e se recolher nas) as aparências pintadas e as figuras, e a superfície, instrumento de visibilidade – como diz ainda Poussin no seu terceiro princípio –, branco do diáfano, meio invisível de todo invisível : branco invisível da superfície invisível do quadro, superfície que não foi marcada ainda, traçada, cercada, por linhas, e suprimida – como se dizia no século XVII – pelas cores
    Entre o diáfano do plano de representação, a parede invisível do cubo cenográfico, que só o acidente de uma cor estranha, a heterogeneidade de outra substância semiótica, uma inscrição, um fragmento «real» do objeto, podem tornar ao visível; e invisível sobre ou avesso da superfície suporte que está sem cor, branco de toda a cor porque diante dela, muro, tela ou intonaco[1], induz ao neutro quanto ao colorido: entre esses «brancos», a representação da pintura desdobra as potências visuais, carnais, visíveis de suas figuras.



[1] - Intonaco = reboco (de parede) – in  Dicionário eletrônico italiano - português  Michaelis
 Fig. 07  MAGRITE Renée A Condição Humana
   Por exemplo, se verá Magritte na A Condição Humana (1934) (Fig.07).[2] entregar-se, na colocação em profundidade do quadro, a uma experimentação do branco diáfano do plano de representação, ou de Jackson Pollock, no A Portrait and a Dream (1953) (Fig.08)[4], exibir o «branco» na área como superfície de linhas e cores, tela onde  a  figura do eu vem se inscrever em díptico na forma  estourada   de um fantasma aterrador.
Fig. 08  POLLOCK Jackson  Portrait and e Dream

   Mas «branco» seria também o fundo do quadro, onde o «branco» significaria o «ausência de figura» ou «entre as figuras», fundo aqui desprovido de meios instrumentais das figuras que são a linha de estrutura ou do desenho, a linha de articulação, mas também a linha de contorno, de circunscrição que contorna a figura; desprovida também de cores nas suas aplicações locais,  nos seus jogos aéreos e atmosféricos, qualidades ajudadas pelos corpos e valores, sobre esses corpos e entre eles das sombras e das luzes.. Com esse outro «branco», encontramos dois outros princípios universais enunciados por Poussin: «Ele não se torna visível sem limites», quer dizer sem linhas de circunscrição e de estrutura das figuras; Ela não se torna visível sem afastamento», quer dizer sem fundo, ou sem intervalo, sem separação entre as figuras. Percebe-se que uma das características das mais profundas do «caravagismo» e do próprio Caravaggio é o «branco noturno» de um fundo na qual a figura é esculpida como um baixo relevo pela violência instantânea de uma luz vinda de algum lugar  e como ela está presente como a  «plenitude» ofuscante no quadro  Ressurreição de Lázaro de 1605 (Fig.09).
Fig. 09 – CARAVAGGIO  - A Ressurreição de Lázaro – antes depois da limpeza

 Eis pois aqui os quatro «brancos» obrando na representação da pintura, os princípios os mais gerais de sua possibilidade e de sua efetividade de representação, tão bem como as condições transcendentais de visibilidade. Dito de outra forma, como o que condiciona o «visível» do quadro : o «branco» do luminoso ( a luz), o «branco» do transparente (o plano de representação), o «branco» da superfície ( a superfície de inscrição das linhas e das disposições das cores), o «branco»do (o suporte das figuras). É sobre esses quatro brancos, de, e na representação, que rupturas, interrupções e síncopes  aparecem para jogar:  são esses quatro brancos que eles trabalham:  rupturas, interrupções, síncopes que, cada uma à sua maneira, remetem aos diversos tipos de opacificação dos brancos da representação da pintura, de opacificação da transitividade branca da representação, essa  «imitação» feita com linhas e cores em  superfície que seja, de tudo que se veja debaixo do sol» e cujo «fim é o deleite».

*

Sem dúvida convém definir com maior rigor e exatidão o que nós acabamos de nomear a «transitividade branca da representação», para melhor aperceber os jogos da opacificações das rupturas, interrupções e síncopes de seu dispositivo. Sabe-se de há muito tempo, que dois acontecimentos maiores marcaram a entrada das artes visuais na época moderna: uma a partir da invenção, no século XV, de um novo espaço para a representação da  pintura por meio  de uma perspectiva geométrica e linear da qual Bruneleschi forneceu a experiência demonstrativa diante do batistério de Florença, Masaccio com a sua Trindade(Fig.10).[2] de Santa Maria Novella a manifesta na pintura, e Alberti no seu tratado De Pictura com uma formalização mais abstrata : e de outra parte, a emergência entre os artistas e escritores de uma consciência muito individualizada de sua personalidade  social e artística.
Fig. 10 – MASSACCIO  - Trindade - têmpera

  Mais profundamente, o século XV assistia a criação de um novo espaço cuja construção era a representação do mundo visível ( e o invisível no visível), representação do qual a pintura era o meio supremo do conhecimento objetivo. Mas, ao mesmo tempo, com esse novo espaço, formalizava-se a noção de um assunto do qual o processo  de fundação epistemológica e filosófica irá se concluir no século XVII com o cogito cartesiano, o «eu penso» que acompanha toda representação, do qual a função, ou melhor a funcionalidade, é o de ser como o coeficiente subjetivo. Panofsky pode escrever, com toda razão, que a perspectiva moderna era «a forma simbólica de uma objetivação do subjetivo» na medida em que o dispositivo de construção depende precisamente com todo rigor de um  «olho-sujeito», de sua posição que permitia – ao menos idealmente – de determinar os pontos chaves desta construção (pelo rebatimento de 90° do olho, colocado estruturalmente no ponto de vista – ponto de fuga., sobre os pontos de distância sobre alinha de horizonte, para constituir tipos de espectadores virtuais a partir dos quais podia ser definido a posição regular (racional) de paralelas ao plano de representação).
  Para o discurso teórico da representação moderna, do Renascimento ao Impressionismo, o quadro é uma janela aberta ao mundo. Pela transparência do plano de representação, e graças a ela, ele o representa em verdade ( pela grade geométrica que baliza o plano com pontos  métricos). Mas para fazer isso, ele deve antes  ser uma área (uma superfície para linhas e cores), área diáfana pois que ela é cavada pelo espaço virtual ilusoriamente profunda da terceira dimensão que a perspectiva ali constrói. Deve também ser um suporte (muro, tábua, tela etc.)que é negada e aniquilada, no entanto,  porque assumida como vazia por um estreitamento essencial que se abrirá logo, como nas grandes paisagens da época de ouro holandesa, até um horizonte pensada no século XVII não como uma limite, mas com índice, entre o céu e a terra, de um espaço infinito. Que esse novo espaço  pictural foi instrumento decisivo da representação da história de sua narrativa, a teoria da pintura do século XV até o século XVIII afirmava com toda a clareza, como a prática dos pintores o manifestava, de seu lado. Mas, para que a pintura da história realizasse a transparência perfeito da representação aquilo  que ele representava, era  necessário não somente que a perspectiva linear reduzisse o corpo do espectador (e da pintor) a um ponto teórico, mais ainda  esse ponto, do qual a pintura era vista, dava ao espectador (e ao pintor) uma posição análoga a aquele do narrador da narrativa em relação  à história que ele conta : o de um olhar a testemunhar da objetividade da narrativa do qual a pintura é a representação. É nisso que consiste a modalidade histórica (ou narrativa) da enunciação por oposição a aquele do discurso. Na representação narrativa da história, que ele seja a imagem ou da linguagem, «os acontecimentos são colocados como se eles são produzidos na medida que eles  apareçam no horizonte da história». «Ninguém fala aqui; os acontecimentos parecem narrando a si mesmos [..] A história» conclui Beneviste nessa análise decisiva, «exclui toda intervenção do locutor na narrativa» Para permanecer fiel ao seu «objetivos do historiador», o escritor da história oculta o narrador em proveito do seu tema de seu enunciado, com a diferença do discurso de cuja enunciação não somente supõe um locutor,  mas ainda a inscreve no seu próprio enunciado A representação da história  em pintura obedece, na sua ordem própria e segundo as características específicas de seu idioma e sintaxe, aos mesmos requisitos semânticas e pragmáticas e as mesmas exigências que são aquelas das formas literárias e retóricas da escriturada história. Do Renascimento até a época das Luzes, a idade moderna produzirá todas as variedades formais da representação visual e literária da história na proporção das transformações históricas das instâncias de produção – pintores, escritores ou agentes, etc. – e da recepção – espectadores, ouvintes ou leitores, etc.
 Mas essa estrutura «branca» da objetividade, essa estrutura de transitividade diáfana da narrativa do acontecimento, não foram jamais que idealidades teóricas, talvez fantasmagóricas, da autonomização representativa. Diversas modalidades da opacidade, dos tipos variados de opacidades  vem perturbar, romper ou interromper os brancos da representação ou fazer entrar em síncope. Lá ainda convém precisar com todo o rigor esta noção de opacidade ou esse processo de opacitação – aqui especificada como ruptura, interrupção e síncope –dos «brancos» da representação. Se o termo da opacidade é uma invenção terminológica da pragmática contemporânea, sua importação do século XVII não é um anacronismo : noção e processo estão «presentes» sob outras palavras nos textos teóricos da arte, da literatura e da filosofia na idade moderna, de Vasari aos lógicos de Port-Royal, ou em Aubigac na sua Prática do Teatro.
  A leitura produz um exemplo  como definição ostensiva. É sabido que ler, é atravessar os signos escritos ou impressos em direção a algum sentido – como se eles estivessem ausentes. No entanto a sua presença é necessária, senão o olhar iria bater sobre a página branca, área vazia, suporte neutro. Contudo os mesmos signos devem se ausentar –diáfanos – ao olhar do leitor. Caso contrário o olhar se interrompe e se fixaria apenas nos significantes do quais desaparecem também os significados. Quando os signos se manifestam como significantes, é então que a transparência da significação torna-se opaca.

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  O pensamento clássico contribuiu com um duplo paradigma da transitividade branca do signo-representação, o mapa geográfico e o retrato. Assim  o plano-mapa de Paris que Gomboust[1], engenheiro de fortificações do rei, traçou na década de 1650, que se considera como o primeiro mapa fiel de Paris. Esse mapa faia, no seu esquematismo complexo de procedimentos geométricos da  transcrição do objeto numa exata transcrição da representação, aquelas da transcrição icônica. Contudo Gomboust não duvida em introduzir quatro pequenas figuras em posição de espectadores na parte inferior do mapa (Fig.11), no topo de uma colina «fictícia» que se prolonga em direção de Charenton. - O que eles olham exatamente?  Paris, a capital do reino, o referente através do mapa ou Paris representado no mapa, a idéia de Paris ou simplesmente o mapa em si mesmo. – o signo-representação – como nós o representamos, mas de um lugar impossível de ocupar no mapa, ou na realidade. Sem dúvida  tudo isso ao mesmo tempo. As quatro pequenas personagens do mapa de Gomboust são de certa forma os delegados – nas representação –do motivo «olhando» a representação. Nesse ponto que poderia passar desapercebido,  manifesta-se através de uma discreta ruptura da transitividade «branca» da representação; uma opacidade reflexiva chega para perturbar a transparência, romper a quase identificação, do referente ao representado no representante. Mais profundamente eles nos descobrem que toda representação se apresenta representando alguma coisa. Elas são figuras desta auto-representação.



[1] GOMBOUST Plano de Paris 1652    https://de.wikipedia.org/wiki/Jacques_Gomboust

GOMBOUST Plano de Paris 1652    https://de.wikipedia.org/wiki/Jacques_Gomboust
Fig. 11 - GOMBOUST – Mapa de Paris - França - ano de 1652 .Margem inferior
(Reimpresso  Geographicus_-_Paris 1900)
[Clique sobre a figura para ampliar e ler]

   Desde então eles retirarão da opacidade e do processo da opacificação todo sinal, elemento, parte, detalhe, marca, figura que interroga  (tremor, quebra, interrupção, síncope) o branco do luminoso, a transparência do plano, o diáfano da superfície, o vazio do suporte. A opacidade reflexiva na sua modalidade própria  faz aparecer na representação de alguma coisa, o «se apresentar» da representação que não pode faltar de produzir, na própria representação, um efeito do motivo pelo qual é colocado em representação o «eu penso – eu vejo» que acompanha toda representação, parafraseando a célebre fórmula kantiana. O quadro, a representação da pintura pensa. Ela se pensa, e da maneira do quadro, a representação de pensar e de se pensar representando alguma coisa, é de representar, de colocar em figura (representação) este pensamento, e na idade «clássica» no início, por que aquilo que se poderia nomear uma ruptura enunciativa, quer dizer através da usurpação (interruptora), na esfera enunciada, da esfera enunciativa.
Uma vez que a representação da história constitui a perfeição sua representação e a pintura, como já vimos, a opacificação da transitividade «branca» da representação consistirá na interrupção  da recitação da narrativa – ou mais precisamente pela ruptura da recitação representada – do enunciado narrativo, pela representação do ato de narrar a alguém, pela colocação  em aparência da sua produção-recepção. Eu daria um exemplo sienês do final do Quattrocento com a essa Annonciation de B. Bonfigli (Fig.12)[1] no qual a figura do sujeito da enunciação  narrativo da história, São Lucas escrevendo as primeiras seqüências de seu Evangelho (da infância de Cristo) aparece sobre a cena da narração de primeira seqüência, o anúncio para Virgem do anjo de que ela será a Mãe do Salvador.



[1]  BONFIGLI – Benedetto  Anunciação http://giangi.free.fr/Bonfigli.html
Fig. 12 –   BONFIGLI – Benedetto  Anunciação -

 Ele aparece ao mesmo tempo como autor da história, entre a Virgem e o Anjo, e como sua testemunha. - Não é a ele que o anjo parece confiar as palavras que  dirige à Virgem para que as inscreva sobre o rolo desenrolado sobre seu  joelho?   Ou, como São Lucas é o patrono dos pintores, se é levado a ver o São Lucas, escriba da narração do quadro e sua figura, a do pintor que  pinta,  colocando em imagem a história contada no Evangelho do mesmo São Lucas. 
 Outro exemplo, desta vez florentino, é também uma Annonciation, de Domenico Veneziano (Fig.13)[1], quase contemporâneo de Masaccio (do qual retoma, na forma de predela, uma Annonciation – a de S. Nicolo sopr’Arno – perdida). Notamos ali em toda a evidência uma poderosa aplicação, sistemática da perspectiva legítima, centrada e linear da qual ainda é visível o traçado na base preparada do quadro que lhe empresta uma autonomia soberana nas sua transparência e sua  trasitividade. Dizemos perspectiva centrada; o traçado construtor marca a equivalência estrutural do ponto de fuga no centro da predela
Fig. 13 –   VENEZIANO – Domenico  Anunciação, Pala di Santa Lucia dei Magnoli, predella 3, - 1445, (Fitzwilliam Museum, Cambridge) - See more at:

 Contudo o ponto de fuga está atrás da porta do jardim fechado da Virgem. A figura da porta o esconde ao olho, situado  no ponto de vista como se o buraco da tavoletta de Bruneleschi estivesse  entupido, enquanto que equivalente estrutural do olho que é o ponto de fuga precisamente o ferrolho da porta. Esse ferrolho da porta fechada que, no sentido literal, aferrolha o olho-observador, e é a representação figurada da opacidade ou da opacificação de um olhar conquistador do mistério virginal (é a porta do jardim fechado) de Maria, Mãe de Deus.  Melhor ainda, este ferrolhamento do lugar fechado da constituição do dispositivo da representação (a perspectiva legitimamente centrada) que a ruptura na medida na qual o ferrolho é desproporcional à porta e ao conjunto da representação.
  Mas ao mesmo tempo o olhar assim aferrolhado do ponto fuga faz retornar ao ponto de vista – se reflete ao olho-ponto de vista – com duas lucarnas gradeadas de um e outro lado do eixo central : essas lucarnas que não são cegas, mas  quadriculadas por uma grade, figuram um olhar que procede do interior do quarto da Virgem, seja do corpo virginal, ao menos d sua antecâmara. Desde então esta ruptura, esta interrupção do dispositivo da representação, na sua efetuação mesma está pronta para a sua retomada iconográfica, há muito tempo assinalada, nos versos dos Cânticos dos Cânticos que descrevem a vinda do Esposo por detrás do muro, detrás das grades, ao encontro da Esposa.
   Extraio um terceiro exemplo de interrupção «reflexiva» e de sua retomada numa síncope visual com a Crucifixão de Sodoma (Fig.14)[1] (1525, Museu Cívico de Siena): trata-se de um capacete colocado entre a pernas do soldado que se veste em face da cruz e ao Cristo dando as costas ao espectador. Sobre esse capacete, sobre a superfície convexa, reflete-se a figura do soldado que esta olhando a cruz. Nesse ponto da representação da crucifixão, a representação não somente se apresenta ela-mesma, mas ela representa seu próprio processo mimético – «imageando» - no «reflexo» sobre o capacete. O reflexo representado torna visível um invisível – para o espectador – um visível escondido pela própria representação: Não vejo o soldado de pé a não ser de costas. ¿- Interrupção reflexiva? «- Por que ¿A representação propriamente dita escapa para o exterior?. Aliena-se no seu próprio processo. Mas ao mesmo tempo, coloca seu espectador na posição do Cristo, figura da representação. No  «eu-penso», o tema torna-se  assim a figura da representação da qual ela se apropria e se identifica. Constrói-se assim um extraordinário dispositivo de espaçamento e de intervalo nisso coerente com a representação, um dispositivo de distanciamento funcionando em torniquete: não visto – visto; não tomado – tomado. Mas, além disso, o capacete porta-reflexo está colocado de frente para o espectador, sobre uma luva de metal, reduzindo-se a uma viseira sem olho. É o ponto de visita «deslocado» no quadro sobre seu primeiro plano.
Fig. 14  SODOMA  (BAZZI Giovanni Antônio  1477-1549)  Descida da Cruz 1525 Capacete reflete o soldado  e a cena  

Esta figura virtual do Cristo, que é também uma figura dividida do soldado carrasco reenvia– ou antes, reenvia-se ao tema – seu olhar, mas sob a forma de um olhar tornado cega. O capacete como suporte da visibilidade (com o reflexo que de que é portador)e como potência da visão sua opacidade ao mesmo tempo figura de cegamento inquietante, perturbadora figura da esfera da enunciação-recepção nos enunciados narrativos.
A exploração, aqui seduzida, das figuras de interrupção, de ruptura ou de sincope revelaria-se muito fecunda não somente sobre o motivo do olhar interrompido pelo cegamento, mas  também sobre aquele do olhar sincopado pelo deslumbramento ou estupefação do qual o tema da Medusa seria a expressão mais forte e dramática, de Anibale Caracci ou Caravággio, e do Narciso representação icônica e iconográfica da teoria da imagem apropriada e como congelada nos mitos de sua origem.

*

 A opacificação do branco da luz, branco transcendental pois que ele condiciona a priori a possibilidade mesma do visível, assinalaria sobre as bordas e os limites da representação no trabalho de seu quadro e na síncope do luminoso e do esclarecimento. Observou-se que a luz solar não é o «objeto» de representação na representação «clássica». A luz é, de alguma forma, no ponto de distância do dispositivo de construção do espaço representado, como um olho lateral, que, nos bastidores da cena da narração, iluminaria suas figuras e seu espaço. Mas também acontecerá, como nos tapetes, relatando a História do Rei, de Le Brun, que a borda interna do tapete, o limite interno de seu quadro,  se beneficie de uma iluminação que não pode ser aquela vista na cena representada mas que é efeito de uma luz externa ao «quadro» transcendente à sua  representação : dois lados do quadro são iluminados, os dois outros estão «sombreados». A representação do rei ator central da história do mundo, que narra a série de tapeçarias, por suas bordas captura da pela luz «solar» condição  transcendental de toda a visibilidade para o proveito do Rei-Sol, condição da possibilidade e da legitimidade de toda a história. É a síncope do luminoso e do esclarecimento recebido e, mais ainda, opera o investimento político-teológico da representação na época da monarquia absoluta francesa, atingindo o zênite do céu europeu.
   Eu tomaria ainda outro exemplo com  ainda com a Annonciation pintada por Piero della Francesca(Fig.15)[1] na capela Bacci da igreja de São Francisco a Arezzo (meio-Quattrocento). Trata-se da barra de madeira sob a janela da lucarna do primeiro piso da casa da Virgem. Esta barra de madeira pintada projeta a sua sombra, pintada igualmente, sobre o muro da casa. Mas essa não resulta da claridade interna da representação, mas da luz vinda da janela central que ilumina o fundo da capela do coro da igreja.. Esta sombra seria aquela que projetaria uma barra de madeira real como se tivesse juntado como suplemento à representação, construída sobre, e além do plano de representação. Dito de outra forma, a barra de madeira representada – pintada –captada na representação, por sua sombra representada, a luz solar iluminando a igreja a través da janela diáfana do coro. Mas por essa captação interna à representação, a luz natural se encontra, por uma espécie de um  Aufhebung[2] mística que a nega realizando-a,  realizando-a em luz sobrenatural pela Annonciation representada que ele acolhe e na igreja na qual ele torna visível a imagem.



[1]   Imagen  PIERO DELLA FRANCESCA  (1420-1492)
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Piero,_arezzo,_Annunciation_01.jpg   + http://warburg.chaa-unicamp.com.br/artistas/view/2034 
[2] - Aufhebung = epoché, suspensão de juízo

Fig. 15 –   FRANCESCA  PIERO DELLA  (1420-1492)  Anunciação, 1456  -Afresco 329 x 193 cm - Capela Bazzi  -Arezzo

  A barra de madeira da Annonciation de Piero della Francesca fornece, por sua sombra entendida, como um quase trompe-l’œil. É tal ‘trompe-l’œil’ que nossa descrição propõe imaginando uma barra de madeira real colocada como suplemento da representação. O trompe-l’œil, tal como podia se praticado ao longo de todo o período da representação, é um belo exemplo da opacitação da diafanidade do plano de representação. Assim, ainda na Annonciation, a de Crivelli (Fig.16)[1] da National Gallery de Londres, o famoso pepino que irresistivelmente, no seu aspecto e pela simples percepção, sai em direção do espaço do espectador.



[1]    CRIVELLI, Carlo (1435-1495).  Anunciação      http://www.mare.art.br/detalhe.asp?idobra=3633

Fig. 16–   CRIVELLI, Carlo (1435-1495)   Anunciação,
Esse excesso singular – e com todas as moscas, todas as gotas de água que  aí aparecem colocados sobre o plano transparente da representação tornam-no visível – opera assim uma opacificação do diáfano pela transgressão, ruptura, corte ou quebra, como o faria uma ranhura de uma vidraça perfeitamente transparente.
   Num outro contexto desse excesso transgressivo que suspende uma das condições de possibilidade encontra-se quando os pintores do Cinquecento ou do Seicento, propõe, para a adoração dos fiéis, a imagem da Santa Face. O véu sobre o qual, segunda a legenda, a imagem do Cristo foi impressa, sem mediação da mão humana, devia ser representado como a imagem de um suporte arcaico de uma representação não menos original, véu  sobre pintado  numa tela de pintura no qual se reproduz, mas  flutuando no seu quadro, o fundo «branco» que traz toda aparência dissimulada. Quanto a face de Cristo, para que ela fosse expressa com toda a  sua impressão miraculosa no tecido do véu, ela deveria, escapando a todos os efeitos das dobras do véu pintado que  a poderia desfigurar, flutuar, imagem pura sem suporte, numa transcendente aura antes do quadro diante do quadro, que a representasse, trompe-l’œil santo de uma relíquia santa, aquela da Verônica, da Vera Icona, da Verdadeira Imagem dos quais os excessos icônicos (o trompe-l’œil) e as opacificações reflexivas não tem outros fins, que  significar a transparência  originária de um véu e da alvura luminosa toda poderosa emanada da face divina.
Tais seriam igualmente os efeitos da intrusão no espaço representado de uma inscrição da escritura que não seria gravada num objeto representado  como um pedestal, um bloco de mármore, talvez parapeito de uma janela o a parede de um túmulo, mas que flutuando sobre o plano, limita  transparente entre o espaço representado e o espaço de onde o quadro é visto pelo espectador, o tornaria de repente visível. Assim no Ex-Voto de 1662 de Philippe de Champaigne, onde ele escreve a narrativa[1] do milagre da qual é beneficiária a filha do pintor, sintaticamente enquadrada na fórmula da reiteração de seus votos perpétuos de religiosa dada à Cristo, está inscrito sobre o plano da representação do qual ela torna a diafanidade visível transformando em suporte neutralizado de uma escritura. Na ocorrência, é a interferência dos signos escritos na representação visual, quer dizer os produtos de uma substância semiótica heterogênea nos espaços infinitos definidos pelas dificuldades como tais para entregar a representação, dos quais constituem as condições da efetividade, para dúvida, a interrupção, à ruptura de sua coerência «semântica» e sua coesão «sintáxica».

*
Seria  possível prosseguir essa pesquisa em numerosos exemplos e variados sobre os diversos modos da opacificação dos branqueadores e das diafanidades da representação da pintura na idade moderna, desse modos nomeados como rupturas, interrupções, síncopes. A amplitude mesma da investigação, a riqueza do corpus que ela oferece para análise, a variedade de obras onde rupturas, interrupções, síncopes se manifestam em diversos níveis, nos quais a análise se empenha mostrado evidências que rupturas, interrupções, síncopes não são de forma alguma acidentes singulares que tocariam de maneira aleatória ou tal contingente ou tal representação para comprometer um momento, sobre um ponto, continuidade substancial, a coesão sintáxica, a coerência semântica, a regularidade do sistema, a lógica da organização, até a articulação «retórica» do discursos. Rupturas, interrupções, síncopes possuem ao contrário das próprias possibilidades, a efetividade, legitimidade da representação: eles gozam de sua características aporéticas[2] são aquelas mesmas do regime geral da mimesis da qual a representação a substitui – para dar aos produtos, às obras sua potente eficácia, o seu mais alto poder na ordem do conhecimento, como naquelas do afeto e da sensibilidade, efeitos semióticos, patéticos, estéticos que se encontrarão histórica e socialmente investidos por todos os poderes intelectuais, religiosos, políticos, sociais contemporâneos e para o futuro.

    Texto do Seminário: «Modernidade: arte e arquitetura» -abril 2000
  Prof Dr.ª  Maria Lúcia Bastos KERN.  FFCH PUC –RS
Tradução de Círio SIMON,  

REPRESENTAÇÃO SINCRÉTICA BRASILEIRA




[1] Descrição de Philippe de CHAPAIGNE - Ex VOTO - 1662 https://en.wikipedia.org/wiki/Ex-Voto_de_1662
[2] - Aporias : na retórica quando o orador finge esquecimento, ou dúvida no meio do discurso.
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