domingo, 21 de fevereiro de 2016

155– LOGÍSTICA em ESTUDOS de ARTE: as palavras e as imagens

Fig. 01 - DAMISCH, Hubert «Préface» in  SCHAPIRO, Meyer. Les mots et les images: semiotique du langage visuel   Paris : Macula, 1996 pp.5-26..

MEYER    SCHAPIRO.
As palavras e as imagens:
.semiótica da linguagem visual
Tradução do inglês por Pierre Alferi
 Prefácio de Hubert Damisch[1]

Prefacio 
A PINTURA CAPTURADA através da PALAVRA [2]

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    Aparentemente, o sentido manifesto : As Palavras e as Imagens (fig.01), apresenta-se, numa primeira leitura,  como um ensaio de iconografia medieval, e que no essencial giraria ao redor da relação entre as imagens – prioritariamente as imagens pintadas e subsidiariamente as imagens da escultura -  e os textos que lhes são determinados para ilustrar.  Uma relação que o autor tende a mostrar que, longe de ser simples, presta-se a todo tipo de desvios, variações, transformações, mas também a todas as transferências derivadas, até contra-sensos, que o historiador, poderá trabalhar como tantos outros índices o sintomas: «Essas transformações picturais de um mesmo texto ao longo do tempo, são do maior interesse dos estudos iconográficos, para  tornar visível a evolução das idéias e das maneiras de pensar»... (p.35)
     A iconografia é vista como uma disciplina auxiliar na ótica da história da arte tradicional. Mas pode ser chamada aos papeis principais, desde que ela pretenda dispor das chaves da interpretação e inicialmente - supor que a distinção seja pertinente e que toda leitura já significa uma parte da interpretação – daquelas da decifração , senão da própria apreensão das obras de arte:   a obra de pintura ou da escultura sendo vista como uma imagem, que emprestaria o essencial de seu sentido, senão seus efeitos, do que ele representa e solicitaria, antes de qualquer investigação analítica, a ser traduzida em palavras A iconografia possui como primeiro objetivo o de tratar a imagem como um texto; mas ela não possui outro sucesso ali do que duplicar, através de um outro texto partir do qual a imagem iria ter acesso à inteligibilidade, um texto não mais para ser visto, mas para ser entendido. Como se a pintura e a escultura não tivessem outro destino, em última análise, do que retirar-se para o interior de sua materialidade sensível, atrás da significação  que ela encontra para se articular no elemento que é o da linguagem. Donde o pendor natural dos estudos iconográficos – a constatação não se limita só à arte ocidental -  quer que a referência a um texto, constituído antes da arte, ou independentemente dela, apareça como a melhor garantia do sentido em matéria de imagens; e isto, como observa Meyer Schapiro, mesmo quando o artista não tivesse consultado diretamente o texto em questão e tivesse se contentado em copiar ou em repetir –seja modificando, como organizado – uma imagem já existente. Num caso como no outro, o que faz  o «motivo» da arte derivaria, diretamente ou não, de uma fonte escrita (mas que pode por sua vez remete à uma tradição oral) : a tarefa do artista se reduziria definitivamente em traduzir em termos visuais o argumento proposto pelo texto, quer dizer à figurá-lo, representá-lo, até colocá-lo em cena através dos meios que são os seus : o texto,  assim como muitas vezes  no teatro, fazendo o motor da representação, tanto  no  momento de sua produção como no de sua recepção.
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Seja a imagem de um homem de braços erguidos e mais ou menos separados, e que eventualmente é associado a duas outras personagens, colocadas aos seus lados,  a guisa de muletas: a investigação iconográfica conduz a aproximar esse motivos, da qual a recorrência é atestada na arte ocidental desde a época paleocristã, até ao século clássico, retirado da passagem do Antigo Testamento narrando a batalha dos filhos de Israel contra Amalec, para aí reconhecer a imagem de Moisés, assegurando através de seu gesto e sua atitude, a vitória  dos Hebreus conduzidos por Josué, enquanto Araão e Hur sustentavam as mãos do profeta, as quais ficaram firmes até o por do sol que viu a derrota dos Amalecitas («Quando Moisés elevava as mãos, Israel era o mais forte, mas quando ele descansava sua mão, Amalec era o mais forte» Êxodo 17, 9-13). Quer dizer que esta aproximação, que se tenta qualificar como estritamente descritiva, se esta caracterização não importasse a idéia de um nível puramente denotado da imagem que deveria ser tomada como anterior às conotações que poderiam ligar-se a ela; quer dizer que esta «tradução» da imagem em palavras, que permitiria assegurar-lhe um título, e cuja operação se resumiria colocar em paralelo dois textos, um escritural  e o outro pictural, destinado a ilustrá-lo; ¿ quer dizer que uma semelhante transferência, da ordem do visível ao do legível seria suficiente para esgotar a significação da imagem,  mesmo declarando o sentido, numa primeira aproximação?
  Ora é nesse momento que a proposta de Schapiro toma toda a sua dimensão. Pois «ilustração» possui, no sentido etimológico da palavra, imagem sendo susceptível de esclarecer (Latim illustrare) o texto enquanto que ela mesma se esclarece e porque a operação não jogaria nos dois sentidos? Se a referência ao texto permite, com efeito, elucidar o tema ao qual se organiza a imagem, esta não  irá retornar sem projetar sobre ele uma nova luz, a ponto de assumir a seu respeito valor e função de comentário :  não se designava, havia muito tempo, de illustratio às explicações e os exemplos didáticos destinados a acompanhar um texto antes que viesse a designar as imagens que eram vistas como ornamentos, e que concorriam, sob esta designação,  com o seu prestígio a sua «illustratio» ?. 
  Ma a palavra illustratio, que no velho francês teve o sentido de «aparição», indica muito bem a finalidade a que obedece a imagem: trata-se, em todo caso, de dar para ver, de manifestar sob uma forma concreta, um objeto, um fenômeno, um acontecimento, um pensamento, que nas condições normais de apreensão ou de leitura escaparia a toda  a possibilidade de percebê-lo de forma sensível, ao menos de forma imediata. No caso de uma imagem destinada a ilustrar um texto, esta operação   reveste-se – da mesma forma que o sonho em Freud – de todas a maneiras de um processo de tradução que não   saberia  estar inteiramente no lugar  do conteúdo e que faz surgir uma forma, susceptível enquanto tal, de desenvolvimentos imprevisíveis, de ordem visual e-ou escritural, e que nessa operação ressaltando uma ou outra dessa duas ordens. Ora é bem ali que irá se produzir – e produto, o termo deve ser entendido no sentido de producere, de um Vor-stellung, da colocação em representação – com a imagem do Moisés com os braços erguidos. A análise das transformações históricas desta imagem é o fio condutor deste livro, depois das interpretações que lhe deram os primeiros cristãos, que viram a prefiguração da Crucifixão, até o valor de um símbolo do ritual eucarístico que irá atribuir a famosa Bíblia Moralizada de 1245 (fig.02)[3], na qual se reúne e resume em imagens, conforme à doutrina da análise «tipológica» ou «figurativa», uma boa parte do trabalho do pensamento cristão, com o objetivo de reconhecer nas narrativas do Antigo Testamento o anúncio da Nova Lei[4]. Não há como deixar de sublinhar que é este ponto desta análise  - sem  dizer nada dos desenvolvimentos que ela exige – abala a concepção do trabalho que nos é familiar.


[2] - Este texto, cuja primeira versão apareceu em março de 1978 na revista Critique, pp. 274-290, refere-se exclusivamente ao primeiro dos ensaios  que aparecem após : «As palavras e as imagens»
[4] - Para os cristãos da Idade Média, [...] toda a realidade e, com maior razão , toda a verdade da fé devia ter nas Escrituras, conforme à doutrina do simbolismo  tipológico que descobre na bíblia uma estrutura em eco: a toda verdade  do Novo testamento responde uma mensagem anunciadora no Antigo Testamento». Jacques Le Goff, O Nascimento do Purgatório, Paris : Gallimard, 1981, p. 65. Ninguém analisou a estrutura da interpretação qualificada ainda de «Figurativa» das Santas Escrituras («tipo» e «tipologia» derivando do grego, «figura» e «figurativo» do latim) e demonstrando sua influência sobre o pensamento medieval que Eric Aufbrach em Figura ( Berna, 1944 ; tradução fr. Paris : Belin, 1993) e seus Escritos sobre Dante (trad.Fr. Paris : Macula, 1999)
BIBLIA de SÂO  l UÍS
Fig. 02 - A BIBLIA MORALIZADA  Palavra e Imagem 
A investigação iconográfico obedece a um princípio da inteligibilidade:  toda a imagem produzida pela mão humana responde como tal a uma intenção, senão a uma função de comunicação e deve poder ser compreendida, prestar-se a decifração e à interpretação,  mesmo que não seja fácil assinalar-lhe um sentido, enquanto que sua significação última, parece muitas vezes escapar, esconder-se. É dizer que o trabalho da iconografia – a observação foi feita mais de uma vez – se revestirá com os procedimentos de uma investigação policial, toda a imagem apresentando-se  como um enigma que solicitaria a ser resolvido. Mas é também que, nesta pesquisa, o investigador não pararia necessariamente na camada mais superficial do sentido, mas com vontade de levar adiante suas investigações, até encontrar, por trás do sentido manifesto uma significação escondida. Dali a fascinação que exercem sobre numerosos iconlogistas as interpretações que chamam para um contorno de uma doutrina hermética ou de uma outra – pitagórico, astrológica, alquímica, maçônica, etc. - , a uma significação oculta ou esotérica : como se, para respeitar na imagem o que fizeram , no registro do visível, o enigma constitutivo, deveria responder-se por um outro enigma, este articulado segundo os caminhos que são os da linguagem, mas algumas vezes mais obscuro, que lhe faria eco.
  Fica ainda a questão de que, se existe um enigma, é necessário encontrar a palavra para ele. Ainda lá a pesquisa iconográfica, será naturalmente levada a dar o passo, sobre uma solução ou explicação diferente daquela que trazem os textos, e de preferência um texto que irá parecer como a fonte da imagem e na qual será suficiente olhar – como Narciso no seu espelho – para decidir de sua verdade, de sua identidade. Acontece a este respeito da iconografia como do connoisseurship: o processo de interpretação se reconduz definitivamente ao processo do reconhecimento, da filiação. Em matéria de iconografia, a pesquisa, na medida em que ela se estende e aprofunda, mas, na medida que ela se pretende mais sutil e refinada, resume-se no final das contas na produção de um texto suposto  garantia da leitura, a interpretação proposta: é nessa possibilidade afixada de uma verificação das hipóteses, que ela avança sobre o sentidos das imagens da pintura que a iconografia (e em menor degrau a iconologia) deve ser tomada por uma disciplina científica.
 Sabe-se que a pesquisa histórica, deu a preferência para os documentos escritos sobre todos os outros. Ora se a história da arte pretende, de alguma forma, hoje o título de disciplina histórica, isso será possível sob a condição de se alinhar sob a exigência de uma outra maneira de história: e além, esta história, nos seus objetos nas suas fontes, para não dizer nada  dos seus critérios de verdade. Do ponto de vista estritamente  da  história, a história da arte não valeria uma hora de trabalho se ela se limitasse a fornecer ao historiador  apenas as ilustrações apropriadas para enfeitar seus propósitos, assim como é possível constatar em manuais ou obras ditas de síntese. Bem ao contrário, não para ser tomada, no seu ponto de partida dos documentos figurativos e reconhecendo-lhes de fontes, que a história da arte satisfará a tarefa que é precisamente a sob o título de história.
 É  tarefa, que a obra de Schapiro cumpre,  não é só isso : pois o que se escreve sob a rubrica de uma «história da arte»,  decorre do fato de um campo articulado de outra maneira e singularmente mais extenso e complexo do que desejam os recortes acadêmicos aos quais escapa essa obra multiforme, que abrange tantos domínios diferentes, que se abre a tantos contatos e pontos de vista variados, desde o sentido estrito da palavra história, até a psicanálise  ou da semiologia, e ao qual esse pequeno precioso livro que é As Palavras e as Imagens traz  uma pontuação, senão uma flexão decisiva. Isso constitui uma parte do grande trabalho realizado por Schapiro que encontra aqui a sua justa perspectiva.

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   De passagem é necessário dizer (mas isso não tem nada de um parênteses) a generosidade é uma das qualidades centrais deste trabalho. Uma generosidade  marcada por exemplo – lá onde a maioria, tão absorvida na pesquisa das fontes ou dos antecedentes, omite muitas vezes de  mencionar as suas,, quando  não os citam sistematicamente ao lado (prática que é regra, hoje em dia, mas da qual Schapiro foi mais vítima  do que outros) – pela referência constante ao trabalho de outros.. Os escritos de Schapiro devem-lhe parte de sua elegância, mas também uma virtude analítica : a impotência de citar suas fontes é sempre o índice de uma resistência, de um obstáculo não superado, e que entrava o progresso da reflexão, quando ele não se traduz regularmente por contra-sensos, como me ensinou no seu tempo Merleau-Ponty  Mais ainda, no plano teórico convém gostar de modéstia nesse trabalho.  Pois Schapiro é sem dúvida, de todos os historiadores de arte de sua geração, aquele que melhor  compreendeu que não saberia se ali existe história, sem um pouco de teoria, não mais do que a teoria que  se organiza e deve se articular com  muita história. Eu insisto, teoria, mas não necessariamente metodologia, da qual estamos mais do que saturados. De fato. há poucos textos mais excitantes ao espírito, entre os que nos são dados, nesse domínio para ler, do que esse. Mas sob a condição de se submeter a algum trabalho, pois Schapiro possui a elegância de deixar ao seu leitor tirar as suas próprias conclusões teóricas que ele deseja e das quais ele fornece todos os elementos. O que faz que ao lê-lo sintamo-nos melhores, como o queria Michelet, o que marca de uma certa forma o «gênio», e que eu me sinta um pouco mais inteligente.
  Contudo não há nada mais contrário aos objetivos de Schapiro - eis porque a observação não tem nada de parênteses, pois o seu valor está em tomar cuidado - de se aproveitar desta circunstância, para retirar de seus escritos uma teoria ou uma boa e uma forma devida, ou  utilizá-los para fins especulativos e que ele sempre recusou, cuidadoso da necessidade em deslocar as questões e de sintonizar com os discursos os mais diversos, não para se utilizar deles para elucidação dos procedimentos e das produções artísticas, mas cultivando a idéia de  colocar à prova esse objeto essencialmente polimórfico – e que, que eu ousaria chamar de, perverso – que possui o nome de «arte».
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Lá onde a iconografia, sob o pretexto de nos levar a decifrar as imagens, não nos dá senão para ler textos, e sem trazer sempre a prova explícita de que tal ou qual representação efetivamente deriva (pois seria necessário, por todos os meios, demonstrar que o artista teve conhecimento, de uma forma ou outra, dos textos em questão, e não simplesmente fazer aproximações aleatórias ou hipotéticas), Schapiro escolheu inverter os termos do problema para  dedicar-se, em primeiro lugar em reencontrar na ilustração – na imagem, como ele diz tão bem, ligado à palavra, the word-bound image- o traço, o caminho de uma leitura. Tal é o propósito do primeiro capítulo de As Palavras e as Imagens, e que dá todo o sentido a este livro : desvio que se pode descobrir entre um texto e sua ilustração pictural, a correspondência muitas vezes problemática e algumas vezes espantosamente vago entre a palavra e a imagem (p.31), longe de que forneçam pretexto, como  acontece tão freqüentemente em iconografia, na busca de um texto que «colaria»de maneira justa aos dados da imagem, são tomados em conta como objetos, que, longe de  ignorar este desvio, ou tratar reduzi-lo, reconhece ali um efeito da leitura, em si mesmo significativo, talvez produtivo. Schapiro lembra, a esse respeito o fato bem conhecido que, nas primeiras Bíblias impressas, um mesmo ícone poderia retornar em diferentes momentos do texto com a finalidade de ilustrar diversas narrativas das batalhas, trocando-se o título da imagem em referência às funções do lugar que ele ocupava no volume. Mas o que se intitula o efeito do contexto não possui no único sentido: o de inscrever, num lugar desejado no texto do Evangelho uma representação do Sacrifício de Isaac suficiente para levantar um problema de interpretação que solicitava ser resolvido por aproximação da imagem, do que a literal : uma aproximação simbólica e que, mediando a colocação em evidência de tal ou qual traço da construção da cena ( a disposição das achas de lenha em forma de cruz ou do carneiro no seu arbusto), levava a reconhecer, no tema o sacrifício de um filho pelo seu pai, emprestando no Antigo Testamento, um «antítipo» da Crucificação . Quer dizer que o texto, senão o objeto (uma cruz decorada) ou o lugar ( um altar dotado de um paramento), empresta às imagens que fazem o seu ornamento uma dimensão suplementar, a ilustração igualando-se a um comentário ou à uma explicação didática, inclusive um exemplum no sentido medieval do termo.
  Se essas duas aproximações de uma mesma imagem são sempre possíveis, uma literal e a outra simbólica, não é somente porque a imagem, por mais primitiva que ela seja, deva ser tomada para significar – como falarão os iconólogos do Renascimento - «outra coisa daquilo que ela mostra para ver[1]», nem que seja necessário chamar, para justificar uma interpretação simbólica ou alegórica, em testemunho de um texto (assim como o faz o próprio Schapiro, em relação a história da Susana e dos Velhos, mas par sublinhar melhor a eventualidade de um desvio). O importante será antes marcar com pontos as diversas modalidades do ligação ( pois existe ligação) entre uma imagem e um texto : seja que esse laço ressalte da ilustração, na acepção que acabamos de dizer; seja ainda como algumas palavras são suficientes; seja ainda da maneira como algumas palavras bastam para dar um título a uma pintura, uma imagem reduzida a alguns elementos encontra-se a funcionar – segundo a feliz expressão de Schapiro – como um «um titulo pictural» [pictorial title] que permitirá marcar no texto a passagem correspondente, ou como um índice que convocará no espírito toda uma cadeia de  associações : colocando-se desde então a questão de uma articulação propriamente narrativa da própria imagem, e parece que, ao ler Schapiro, a arte românica dirigia seus forças antes de Giotto, e três bons séculos antes que Alberti, determinando  para a pintura a tarefa da representar a istoria Mas se o emblema pode reduzir-se a uma simples marca, este «ornamento relatório» (como significava emblema  em latim) pode  igualmente comportar numerosos detalhes, figuras ou acessórios, do qual o texto não conta,  até – sem esperar para que se constitua a cena da perspectiva – todos os elementos de uma colocação em cena, de um quadro representativo, senão um lugar teatral : a Adoração dos Magos no oferece um exemplo clássico, e cujo cortejo irá se ampliar até se desdobrar, como se vê em Florença, no palácio Medicis, sobre as quatro paredes de uma capela principesca.
  Ora todas essas análises não tem sentido do mostrar, como Schapiro a emprega, que a oscilação do literal ao simbólico que é motor da decifração das imagens e de sua interpretação que já está inscrita na leitura que o próprio artista já tenha feito anteriormente do texto, sem que ainda ali se possa operar sempre a separação, nesta troca, neste deslizamento, entre aquilo que é o feito do emissor da mensagem e aquilo que pertence ao seu destinatário. Mesmo, lá onde parece que o artista se ateve a uma leitura literal, ainda que muitas vezes parcial, sempre fica a possibilidade de uma interpretação simbólica, na medida que é verdadeiro que desde os inícios da era cristã a idéia tenha-se imposta  uma leitura «figurativa» do Antigo Testamento : a imagem de Jonas na sua baleia, de Daniel na fossa dos leões, como também aquela de Moisés de pé sobre a colina, com os braços erguidos, não devem ser considerados somente pelo seu valor descritivo, mas como a metáfora, e ao mesmo tempo o anúncio articulado na forma e nos termos da Lei Antiga, acontecimentos e ensinamentos que desembocam na Nova Lei. Mas a leitura mais literal não acontecerá sem conseqüências : quando o pintor do saltério de Utrecht[2] escolheu ilustrar a palavra do salmista:  «Acorda-te. Senhor! Por que dormes?» (Salmo 43) pela imagem do próprio Deus, deitado numa cama Sendo acordado por Anjos (fig.03), deve-se concluir que Deus, se é capaz de dormir, seja da mesma forma, capaz de sonhar, - seja um tema do qual, eu da minha parte, não duvido, mas sem poder trazer a  prova, a «fonte» textual ou icônica, que algum autor mais ou menos herética tenha explorado?


[1] - «Le immagini fatte per significare una diversa cosa da quella che si vede com l’occhio» Cesrare RIPA, Iconologia (1592) «Proemio»
Fig.03 Saltério de Utrecht ilustração da palavra do salmista:  «Acorda-te. Senhor! Por que dormes?» (Salmo 43) pela imagem do próprio Deus, deitado numa cama Sendo acordado por Anjos,

  Ao colocar assim a ênfase, na leitura do texto, na busca característica do artista, se é conduzido a certas observações que não teriam escapado a Schapiro, mesmo se ele não entendeu, ao menos nesse livro,  o destino que merecem. Não são somente os intérpretes (historiadores, iconógrafos e iconólogos) que estão submetidos à lapsos, com tais reveladores, e que ele gostaria de recensear. Tais erros podem ser cometidos pelo próprio artista, senão pelos copistas ou tradutores do qual ele tinha  texto sob os olhos.  Schapiro cita o exemplo de um erro de tradução, que teria conduzido o pintor da Bíblia Moralizada ao representar Josué brandindo um escudo por sobre sua cabeça, lá onde a  versão hebraica do Antigo Testamento fala de uma lança (Josué, 8). Nesse mesmo sentido, pode-se citar a confusão na qual caiu Uccello se  deve crer em Vasari, e que o teria levado a substituir, uma abreviação (camel.), pela imagem de um camelo (Camello) em aquele do camaleão (cameleone), e, de fato  e o símbolo do elemento «Ar», no lugar de um «pequeno lagarto» toma forma uma «grossa besta desproporcional».  Quando aquela que teria cometido Luca Signorelli, em Orvieto[1], quando para ilustrar a passagem da Divina Comédia em vez de representar o anjo do Purgatório conduzindo as almas numa leve barca, in un vasello anelletto, ele colocou nas mãos do anjo um vaso (vascello) e esquece o navio (fig.04) .
[1]  SIGNORELLI Capela de São Brizio Orvieto https://it.wikipedia.org/wiki/Cappella_di_San_Brizio
Fig.04 --Luca Signorelli, detalhe dos afrescos da Catedral de Orvieto (c. 1.500 ). Ilustrando a passagem da Divina Comédia onde Dante evoca «o anjo que atravessa o rio com frágil  barco»(Purg. II 40-45)O artista confunde vasello (navio) com vascelo (vaso): ele coloca uma copa na mão esquerda do enviado celeste

Mas o que nos garante, em todos esse exemplos, que o erro aparente, o lapso pretendido, não obedece, da parte do pintor a uma intenção deliberada, e que  exigiria ser interpretada como tal, da maneira como na escultura romana, como Schapiro observou em relação ao pilar de Souillac[1] (fig.05) oferece vários exemplos de transbordamento e  «fantasias», e «chistes» marginais, que um analista versado na literatura psicanalítica, seria tentado de interpretar num sentido inteiramente diferente do que aquele que se recusa a ver na decoração de uma igreja medieval outra coisa que a expressão de um programa perfeitamente coerente do ponto de vista teológico? 
Fig. 05 – COLUNA (mainel)  de SOUILLAC (1.120 – 1.135)    ¿A  Imagem e o inconsciente?

O paradoxo que pretende que a arte – e é ai que reside a sua perversidade – possa retirar, em todo conhecimento a causa, os caminhos que são aparentemente os do inconsciente, e  imitar as operações, para atingir, de uma única vez, a um verdadeiro polimorfismo de sentidos.

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  Sejam quais forem as reservas às tentativas para aplicar os métodos da iconologia –até a sua vã «hermética» - aos produções da antiguidade clássica, e todos os cuidados que Panofsky teve em limitar o campo na época em que assistiu o triunfo do pensamento emblemático e alegórico, Schapiro teve o mérito, ainda ali, de deslocar o problema, lembrando, no que concerne à arte cristã, que o comentário bíblico deu lugar, em particular entre os exegetas alexandrinos, a uma verdadeira super oferta hermenêutica,  não sendo fácil de operar e permitindo, entre uma interpretação literal, fundada sobre o sentido manifesto das obras, e uma interpretação simbólica, concedido a seu sentido latente, não mais do que os pensamentos que se supõe ter habitado o artista, enquanto que ele fazia a obra e aquelas  que faltam para alimentar um intérprete avisado de existência desta literatura. Não é mais necessário interrogar as próprias obras para tentar determinar em que medida elas puderam ter lugar, ao mesmo tempo que o instrumento, de um trabalho de pensamento específico, e de pesquisa e até que ponto a constituição de um texto pictural obedece aos princípios análogos a aqueles que regem o desenvolvimento do comentário escritural.
   É possível dizer que a leitura, feita por um artista medieval de textos que remontavam à épocas muito longínquas, senão míticas,  colocam  na saída do  jogo, um problema do próprio fato de que a diferença que  separava a redação dos textos de sua tradução  em termos visuais : diferença temporal, diferença histórico, mas também separação  cultural, e inicialmente exegética. Schapiro de maneira muito viva redescobre a luta travada, na linha da tradição rabínica, pelos pintores que trabalhavam para clientes judeus, contra a interpretação cristã do Antigo Testamento : onde os cristãos queriam ver, na história santa, a prefiguração de um episódio do Evangelho, o comentário rabínico tentou constantemente apagar a essa interpretações.  Mas, como insiste acertadamente Shapiro, ele não pode fazer com que o texto da Bíblia não se apresentasse, na sua própria estrutura, como um texto messiânico, fundado como tal sobre um jogo complexo de antecipações e de repetições, de esperas e de acelerações: para iniciar com a lei mosaica, que deveria encontrar seu duplo, sua duplicatum, no Deuteronômio. A frase do apóstolo Paulo: «Essas coisas foram figuras daquilo que nos concerne» (I Co, 10, 1-6) que Pascal irá retomar, adquire uma noção do signo e da figura que encontra sua  justificação nas escrituras.  Ora essa mesma noção fez um  dos impulsos mais constantes da iconografia cristã, esperando que o Renascimento viesse renovar o velho fundo iconográfico sobre o qual haviam trabalhado os artistas da Idade Média, mas sem ali ainda tirar partido de um processo de semantização comparável.
  A Bíblia Moralizada apresenta-se como um imenso livro de imagens, na qual cada cena, emprestada do Antigo Testamento, é acompanhada e se duplica de uma segunda imagem, destinada a explicitar o sentido simbólico e anunciador. Esta disposição, toma todo o seu sentido, se se considera, como o faz Schapiro, que essas imagens não ilustrem um texto pré existente e que as legendas dos quais elas se fazem acompanhar não tenha outro objeto do que manifestar a conexão. Com esse manuscrito, possui-se a preocupação com um verdadeiro discurso de imagens no sentido em que o entendiam os iconólogos do século  XVI, e que se funda sobre junção de duas representações estabelecidas, uma em posição de símbolo, e a outra  simbolizada, sem que a ligação entre significante e significado tenha nada de arbitrário: «A analogia remete para uma intenção divina que determinou, seguindo uma ligação  causal complexa, os dois acontecimentos colocados em imagem e conexão histórica» (p.82). É a transferência na ordem espacial que é aquele da visibilidade, da figurabilidade, a passagem do diacrônico ao sincrônico que faz o motor do signo (da «figura»), como ele faz a o da interpretação.
   Se o sentido, do qual  está investido, mudou no mosaico de Santa Maria Maior (século V), que representa a batalha contra os Amalecitas, até chegar a imagem correspondente da Bíblia Moralizada do século XIII (fig.02) [1]  isto não acontece só, como sublinhou Schapiro, porque a pré figuração da Cruz deu lugar a um signo anunciador do ritual da missa: como podia acontecer, numa época anterior, quando o esquema da personagem de braços erguidos foi usado para representar o Imperador, sustento da Fé , a relação da simbolização, da pré figuração, joga no entanto entre um episódio histórico, senão mítico ou legendário, e uma prática contemporânea. Mas o jogo de espelhos entre uma e outra das cenas ( que a Bíblia Moralizada inscreve alhures em medalhões circulares análogos aos pequenos espelhos em marfim esculpidos que  conheceram grande voga na época) não constitui um o motor da simbolização. Para citar o Parsifal de Wagner:: «Zum Raum wierd hier die Zeit». «Aqui o tempo faz-se espaço». E  até que o edifício cristão, que não era até aquele momento lugar de uma operação, de uma transmutação, de um transporte análogo do tempo e do espaço, da recitação até a procissão, do ritual ao teatro.
 Mas para que essa energia possa jogar plenamente era necessário ainda que, de uma imagem até outra, o jogo de espelhos não só se referisse aos conteúdos e que pudessem se articular em termos formais: a atitude dada à Moisés, na batalha contra os Amalecitas, de pé, os braços erguidos, fez, durante muito tempo, aquele de Cristo na cruz, antes de entrar em ressonância com aquele do sacerdote no altar. A Bíblia Moralizada oferece outras amostras desse gênero de encontros: a  imagem do Cristo carregando a cruz imita quase exatamente, até na disposição das achas de lenha em cruz,  aqueles de Isaac subindo para a fogueira, enquanto que sobre a página que faz a frente para essa, é Abraão, o pai sacrificador, que se apresenta como os braços em cruz, acima de uma imagem da Crucifixão.  Observa-se que ao menos no registro visual as posições do significado e do significante agora se invertem: Pois as achas de lenha de Isaac assumem a forma da Cruz, e se atitude de Abraão pré figura aquele de Cristo, é sob a condição, para uns e o outro, de se dobra ao esquema da cruz, o efeito da semantização jogam tarde demais, em sentido oposto da continuidade histórica. A mesma observação vale para o manuscrito hebreu produzido em Paris ao redor de 1278, do qual Schapiro dá conta, e no qual artista se empenhou em contradizer aproximações, senão negá-las, pelos meios que devem só à figuração : Moisés se dá a ver de frente, as mãos erguidas, mas colocadas sobre o peito, como para esconjurar o sinal da cruz.
   Ora a imagem do sacerdote, na Bíblia Moralizada, não responde a esse dado, o oficiante sendo representado de perfil, ou que. Donde se introduziu uma nova polaridade significante, que não joga sobre aproximação de duas imagens mas sobre a oposição entre dois modos de apresentação, ou duas «vistas», uma face a outra de perfil, onde Schapiro, retomando de forma bem calculada evidentemente (e um pouco retorcido) o conceito que Panofsky introduziu para tratar da perspetiva, não exista em reconhecer «formas simbólicas», mas cujo valor será essencialmente  polar, oposicional, dependendo em todo caso de sua  colocação  em ação num contexto dado. Se a  posição que a Bíblia Moralizada determina para Moisés implica, para além do «tema de condição» ali reconhecido por Schapiro, uma forma de sacralizar a figura, e que ela opõe-se à apresentação de perfil que é o feito do sacerdote, do qual ele manifesta ao contrário o envolvimento numa ação concreta, empírica, contemporânea. Em definitivo as duas formas são simbólicas, na sua própria oposição,  a qual decide sobre o sentido que convém consignar, na forma de um signo cristão na oposição entre o Antiga e a Nova Lei. Mas isso não é para dizer que esse sentido seja todo arbitrário, ou convencional : a comparação a que Schapiro introduz, entre os jogos dos ângulos de vista e das cores (pp.120-121), é perfeitamente fundada a esse respeito: em toda representação  que coloca em jogo um par fortemente contrastado, essa qualidade fenomenológica e-ou expressiva a que se prende, a um ou outro, dos termos reforça no outro a qualidade oposta, Na proporção na qual a imagem toma figura de proposição articulada, se tem pela frente os mesmos símbolos e os mesmos  valores, como o queria Saussure, e como tais, relativos[2].

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O propósito que Schapiro possui em As Palavras e as Imagens, ultrapassa, e de longe, a iconografia tradicional. Muito melhor, ele conduz a uma inflexão radical, desde que se trata não somente de decidir o sentido de tal ou qual imagem e daquilo que ela representa, procedendo, como falam os matemáticos, por aplicação, a partir de um texto ao qual se fará corresponder um a um os termos com tal ou parte da imagem, e procurar como isso funciona, ao título de dispositivo significante, senão na proposição pictural [pictorial statement],   interrogar-se até sobre o que um tal processo revela de um modo de funcionamento simbólico muito mais geral.
Desde então percebes-se que o seu livro tem por objetivo encontrar o seu lugar, na origem na coleção intitulada « Approches to Semiotics», «Acesso à Informática». Mas se o projeto de Schapiro é de inspiração semiológica no sentido o mais geral, mas também vago do termo, ele não assume menos, ao olhar dos teóricos que reinam na matéria, como da história da arte acadêmica, um alcance essencialmente crítico, sabendo-se que Schapiro  dedicou-se a um estudo fundamental das propriedades  significantes – qualidades do campo, do enquadramento, da orientação, do posicionamento, etc, - e em geral, a tudo aquilo que, nas imagens da arte, não diz diretamente da mimeses ou de uma iconologia, e como tal, não se presta para à uma tradução[3]. O problema colocado em As Palavras e as Imagens pode parecer, ao menos no seu enunciado inicial, de uma aproximação mais clássica, senão a tradicional :  se o artista tem por tarefa traduzir  uma mensagem verbal por uma imagem visual, a inteligibilidade disso repousará em definitivo sobre o fato que os objetos e as ações  significadas pelas palavras devem prestar à representação sobre a espécie de formas reconhecíveis em si mesmas (pp.31-32). Ora todas  as análises  que fazem esta enunciação ,opõe-se a ideia de uma correspondência termo a termo entre o texto e as imagens tão bem, que a hipótese sobre o qual funda-se o projeto de uma semiológica geral e que queria que a passagem se opera sem resto de um registro para outro campo semiótico, do qual a unidade seria a garantia para a possibilidade de uma tradição a recíproca e geral..
 Parece que durante um tempo muito curto, que Benveniste havia sabido formular, melhor que todos os outros, o problema, que seria de uma semiologia da pintura, lá  onde «as cenas figuradas são transposição icônica de narrativas ou de parábolas e reproduzindo uma verbalização inicial» : «O verdadeiro problema semiológico, que em nosso conhecimento, ainda não foi colocado, seria a pesquisa COMO se efetua essa transposição icônica, quais são as correspondências possíveis de um sistema para um outro, e em que medida, essa confrontação, se deixaria seguir até a determinação de correspondências entre SIGNOS distintos[4]» . Ora é para resolver esse problema, ao menos para colocá-lo, que Schapiro trabalhou em As Palavras e as Imagens. Mas o resultado dessa confrontação não é aquele que se poderia esperar. Certo, a questão da figurabilidade, da Darstellbarkeit no sentido freudiano, esta bem no centro da pesquisa, quanto as observações teóricas que essa convoca. Mas como por aquilo que é sonho, a análise iconográfica, tal com a concebe Schapiro, não tende a constituir uma gramática, muito menos um léxico. De fato, a questão do sistema jamais é colocada, quer se trate de correspondências entre os enunciados verbais e as proposições icônicas, ou do sistema de signos, aos qual se conduzir a pintura, se a hipótese de uma tradução termo a termo, deveria ser conservada. E quanto à noção de signo, sob cujo título  procede esta pesquisa, o menos que se pode dizer é que ela aparece mais problemática no final do que no seu início.
 Com efeito, essa é a originalidade da pesquisa de Schapiro, que, postulando a existência de uma ligação entre a imagem e a palavra,  transforma de fato a questão. Como, se para ele, tratasse-se menos de mostrar que toda imagem, é por assim dizer, presa a uma cadeia linguística da qual ela emprestaria sua articulação,  do querer restituir algo do trabalho de transposição e, como falava Benveniste, de seu COMO. Ora a ideia que se impõe, na leitura de As Palavras e as Imagens, é que ali existe menos a transposição de um sistema de signos para um outro sistema do que a travessia recíproca do texto através da  imagem e da imagem através do texto. Da forma pela qual uma língua artificial não saberia constituir-se, do que se conectando com a língua  natural, a potência semiótica característica da pinturas é medida pela capacidade de mostrar essa arte em falar junto com tal ou qual texto, tal ou qual discurso. O que manifestam as análises de Schapiro, é ao mesmo tempo a realidade desta «tomada da fala» e sua articulação propriamente semiótica. Pois, se a pintura, sabe fazer surgir no texto da Escritura tal imagem como para como signo e o usar como tal, se o texto cria signo para a pintura como a pintura cria signo para o texto, esse deslizamento da instância das palavras para aquele das imagens não é sem analogia com aquele que impulsiona a própria língua. E não é por acaso que Schapiro acredita revelar na oposição face-perfil uma relação ao do sujeito percebendo às figuras representadas que faz eco para a polaridade das pessoas, na acepção pronominal da palavra, onde o próprio Benveniste reconhecia uma das condições estruturais do exercício da linguagem :
O rosto de perfil está separado do observador e pertence, com o corpo em ação (ou inerte e sem objetivo), a um espaço que os outros perfis repartem sobre a superfície da imagem. Ele corresponde aproximadamente à forma gramatical da terceira pessoa : o pronome «ele» ou «ela», não especificado, seguido da forma verbal correspondente; em vez disso o rosto voltado para o exterior parece animado de uma intenção, de um olhar latente ou potencialmente dirigido ao espectador, e correspondendo ao papel do «eu» na linguagem, associado ao «tu» que é o complemento obrigatório” (infra, p. 95)
   Ora, existe ali mais do que uma metáfora: a prova é que uma segunda língua não saberia tomar forma a não ser seguindo os caminhos da constituição da língua natural, e arremedar as operações[5]. Mas o que quer dizer «segunda língua», e «segunda» em relação a que?. Ainda lá, a referência a Freud e ao conceito de figurabilidade se impõe. Pois o problema não é tanto saber qual relação que os semióticos russos chamaram o «sistema modalizante secundário» - entre os quais deveria figurar a pintura – entretém com a linguagem[6], o de procurar em que a operação de tradução, da transferência do registro legível para aquele visível (e reciprocamente) pode esclarecer o funcionamento do discurso, senão da própria linguagem. «já se tem como adquirido , escreve ainda Schapiro, que a imagem pintada [picture]corresponde ao conceito ou à imagem mnemônica [memory image]associada à palavra»(p.31) diga-lo na forma pelo qual os editores do Curso de Linguística Geral, creram poder estabelecer  em posição significativa o significado da palavra «arvore» sob a imagem de uma porta dupla, que no entanto está muito longe, na sua especificidade, de dar conta da extensão plena do conceito[7].


[2] - Ferdinand Saussure, Curso de Lingüística Geral, edição crítica de Tullio de Mauro, Paris : Payot, 1972, p. 158 sq. « O valor lingüistico considerado no seu aspecto conceitual»
[3] - Cf. Meyer Schapiro, «On some Problems in the Semiotics of Visual Art : Fild and Vehicle in Image- Sign», Semiótica, I (1969), n° 3, pp. 233-242: retomado in M. Schapiro Theory and Philosophy of Art : Style, Artista, and Society, New York, 1994, pp. 1-32,. Trad. Fr. Por J.C. Lebensztejn «Sobre alguns problemas de semiótica da arte visual : campo e veículo dos signos icônicos», in Critique, n° 315-316 (ago-set. 1973) pp. 843-866; retomado in Schapiro, Style, artiste, sociéte. Paris : Gallimard, 1982, pp. 7-34
[4] - BENVENISTE, Émile, «Semiologia da Língua», in Essais de Linguistique générale, t. II. Paris : Gallimard, 1974, p. 59, nota 1
[5] - Cf. DAMISCH, Hubert «La prise de langue e le faire signe», in Prétexte Roland Barthes,Coloque de Cerisy, Paris : UGC (10-18), pp. 394-418.
[6] - Sobre a noção de «sistema modalizante secundário» e a idéia de uma pluralidade dos «códigos artísticos» cf. Iouri Lotman, Struktura khudozestvenneogo teksta, Moscou, 1970: trad. Fr. La structure du texte artístique, Paris : Gallimard, 1973
[7] - Saussure, op. Cit.. p. 99
Fig. 06 Os editores do Curso de Linguística Geral, creram poder estabelecer  em posição significativa o significado da palavra «arvore» sob a imagem de uma porta dupla,

É dizer demais que a proposição segundo a qual a imagem pintada corresponderia ao conceito é ir muito longe, e Schapiro não deixou de observar, em vista das imagens do assassinato de Abel por Caim, que um verbo  por si mesmo não possui nenhuma caracterização figurativa da ação como o de «matar»: na ausência de toda a indicação explícita, é necessário ao ilustrador colocar nas mãos do assassino a arma, a ferramenta, o instrumento ( o mais das vezes o maxilar de um asno), que servirá para esse assassino, e cuja escolha não seria imune de consequências, teológicas ou outras[1]. Mas o que dizer então de noções ainda mais abstrata, ideológicas, ou mesmo conceituais ? Ainda lá Schapiro fornece preciosos exemplos : o fato que, na representação do Pentecostes, a pomba descendo ao mesmo tempo sobre a figura do Cristo e a mão de Deus iguala , na leitura que ele propõe, existe um enunciado pictural do filiolóquio sobre o qual se dividiram as duas igrejas, as do Oriente e a do Ocidente(p.34); e vimos, sobre o exemplo de um manuscrito para pinturas hebraicas do século XIII[2] (fig.07) como uma proposição pictural poderia ser interpretada como negação da outra. O fato é tanto mais notável, que a proibição que a lei mosaica estabeleceu sobre as imagens, poderia ter eliminado uma tal operação.


[1] - Infra, p. 33. Para uma análise mais desenvolvida, cf. Meyer SCHAPIRO, «Cain’s Jawbone thet Did first Murder», Art Bulletin, 24 (1942), pp. 205-212ç retomado in M. SCHAPIRO, Late Antique, Early Christina and Mediavel Art, Selected Papers, II, New York, Brazillier, 1979, pp. 249-305.

Fig. 07– Manuscrito para pinturas hebraicas do século XIII como uma proposição pictural pode ser interpretada como negação da outra.

  Para que os efeitos desse gênero sejam possíveis, ainda é necessário que o próprio texto se preste a representação  para a figuração, e que de uma ou outra maneira ele justifica, chamando-o as pretensões da pintura, querendo falar com ele (o que os iconoclastas recusam). Ora é exatamente isto que se vê quando o pintor extrai de um texto o tal traço formal cujo eco repercutirá logo após na pintura como na própria literatura. Se a história de Moisés e dos Amalecitas aparece como o antítipo da Crucifixão, é que a imagem de um Moisés, de braços em cruz, se impôs antes : seja em imagem que sintonizava como texto, mas que não o exigia necessariamente, o artista descuidando uma outra indicação, esse literal, que só deveria ser reconsiderada muito mais tarde, e que queria que Moisés no final do dia tivesse se sentado sobre uma pedra, detalhe que os iluminadores carolíneos deveriam interpretar como uma pré figuração do trono imperial. Quanto ao sinal da cruz, teria servido de veículo aos mais variados conteúdos, depois gesto de oração - orante Paleocristão (fig.08) [1] . até a atitude que é a do sacerdote no momento da realização do ritual da missa, prestando-se para um jogo de ecos sempre renovados no registro textual como aquelas das imagens, tão bem entre texto e imagem.
Fig. 08– O sinal da cruz, teria servido de veículo aos mais variados conteúdos, depois gesto de oração - orante Paleocristão. até a atitude que é a do sacerdote no momento da realização do ritual da missa, prestando-se para um jogo de ecos sempre renovados no registro textual como aquelas das imagens, tão bem entre texto e imagem.

  É lá que Schapiro mostra ainda,  a propósito da história de José que o Saltério de São Lucas representa precipitado no poço pelos irmãos, de braços em cruz, para que o pintor o pinte se despindo na mesma atitude É pois falso de acreditar, como o queria Benveniste, que a relação significante das pinturas são características, ou sejam à de descobrir nos limites de uma composição singular, e que em definitivo não existe sistema – para retomar a fórmula de Jean- Louis Schefer – que a do quadro[1]. Acontece para as imagens de arte como acontece para os mitos segundo Levi-Strauss : eles se pensam e se conjugam entre si. Mas também vão pretender construir, conforme o desejo de Jakobson, um modelo geral da produção e da percepção dos signos, tão bem como de modelos específicos de diferentes sistemas de signos. Isso não implica, bem ao contrário, que seja sem sentido a questão que o próprio Jakobson colocava, tocando na relação estrutural enquanto que percetivos entre os signos visuais e os signos auditivos, e as relações que se podem  fazer entre um registro ao outro[2].
  A esse respeito, as análises de Schapiro, concorrem ainda para impor  ideia de que toda tradução visual de um enunciado discursivo, funda-se, no final das contas, sobre a dimensão metafórica da língua. Para não dizer nada da propriamente especial, «projetivo», que Wittgesntein do Tractatus pretendia reconhecer para todos enunciado, considerado tanto como Bild ou picture e como «modelo da realidade»  que ele pinta[3] :a quem faz secretamente eco a distinção marcada em As Palavras e as Imagens, entre imagem [image] (ela que em geral é especificada como «visual» «mnésica», ou ainda como «ligada à palavra»), e pintura [picture]  ,daí o retorno sobre a forma adjetiva nas alocuções tais como pictorial statement ou pictorial title revestes-se nesse contexto de um relevo particular. Sem que ali haja nenhum paradoxo, o trabalho de pintura toma simultaneamente sobre a forma da iconicidade do que é característica da linguagem e sobre aquilo que esta arte mesma comporta, na lateralidade, de fato elementos e meios não-icônicos[4]. A que junta-se, em termos de figurabilidade, de Darstellbarkeit, esse dado de experiência do qual Freud deu-se conta e quer que seja sempre possível substituir um texto abstrato por um texto mais imaginado e que lhe seja ligado de uma ou outra maneira, por simbolização, por alegoria, por oposição, etc[5].
  A respeito dessa operação, que faz parte integrante do trabalho de transposição visual, o papel da arte, aquele da pintura, não possui nada de «secundário» « tudo acontece ao contrário como se a linguagem – e a fortiori a linguagem poética – fosse trabalhada, no seu próprio funcionamento, pela questão da figurabilidade. E isto até ao sistema, a iconicidade e a metaforicidade que lhe é própria tendendo naturalmente a se completar e se acabar, como gostava dizer Gaston Bachelard, no reino da imagem, mas não sem que no processo, que é  processo do pensamento (no sentido em que Freud falava de um «pensamento do sonho»), o imaginário não interfere necessariamente com o simbólico. De tal forma que se seja tentado de substituir à tradição recebida do adágio clássico que estabelece um paralelo entre poesia e pintura – ut pictura poesis, « a poesia como a pintura» - uma outra tradução, essa deliberadamente anacrônica, riscada, e que frisa o contra-senso: « para que haja pintura, há necessidade que exista poesia», e reciprocamente, uma não caminhando sem a outra. Ou para dizê-lo de outra forma, assim que nos convida Schapiro, por  uma caminhada  decisiva, desde o intitulado -  intraduzível em francês – de seu livro, Words and Pictures ( e não Words and Images, como se poderia  esperara, e como que a vulgar teórica) : o fato é que  num momento, de um título para outro, o trabalho da pintura possa, ou deve,  passar pelas palavras e,  seja devido ao seu corpo defensivo, e com eles armando laços, em correlato, falando semioticamente, na sua forma como na sua substância, no seu fundo escritural, toda expressão lingüistica participa pouco ou muito do regime dito «pictural» da imagem.

Hubert Damisch



    Texto do Seminário: «Modernidade: arte e arquitetura: questões teórico-metodológicas” » -abril 2000
  Prof Dr.ª  Maria Lúcia Bastos KERN.  FFCH PUC –RS
Tradução de Círio SIMON,  


[1] - Cf.  BENVENISTE, Emile, «Semiologia Língua», in Ensaios da lingüistica geral, Paris : Gallimard, 1966, t. II, p. 59, e Jean-Louis SCHEFFER, Cenografia de um quadro, Paris : Le Seuil, 1969, pp. 161-194.
[2] - Cf. JAKOBSON Roman «On Visual and Auditory Signs» Phonetica, IX (1964); trad. Fr. «Da relação entre signos visuais e auditivos» in R. Jakobson,  Ensaios de Lingüística Geral, t. II, «Relatórios internos e externos da linguagem», Paris : Minuit, 1972, pp. 104-112.
[3]Das Bild ist ein Modell der Wirklickeit {...}.«A imagem é um modelo da realidade» ... «[Es} kann  jede Wirklichkeit, deren Form es hat» «[Ela] pode pintar cada realidade que possui alguma forma» WITTGENSTEIN, Ludwig, Tracataus logico-philosophicus, (aforismos 2.12 e 2.171)
[4] - Cf. supra,p. 21 e nota 1.
[5] - FREUD, Sigmund, «Matapsycologische Ergänzung zum Traumlehre», Gesammelte Werke, X p. 419, nota 1; trad. Fr. «Complementos metapsicológicos para a teoria do sonho», Paris : Gallimard, 1968, p. 135-136, nota 1
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