Fig. 01 - DAMISCH,
Hubert «Préface» in SCHAPIRO, Meyer. Les mots et les images:
semiotique du langage visuel Paris :
Macula, 1996 pp.5-26..
MEYER SCHAPIRO.
As palavras e as imagens:
.semiótica da linguagem
visual
Tradução do inglês
por Pierre Alferi
Prefácio de Hubert Damisch[1]
Prefacio
1
Aparentemente, o sentido
manifesto : As Palavras e as Imagens (fig.01), apresenta-se, numa primeira leitura, como um ensaio de iconografia medieval, e que
no essencial giraria ao redor da relação entre as imagens – prioritariamente as
imagens pintadas e subsidiariamente as imagens da escultura - e os textos que lhes são determinados para
ilustrar. Uma relação que o autor tende
a mostrar que, longe de ser simples, presta-se a todo tipo de desvios,
variações, transformações, mas também a todas as transferências derivadas, até
contra-sensos, que o historiador, poderá trabalhar como tantos outros índices o
sintomas: «Essas transformações picturais de um mesmo texto ao longo do tempo,
são do maior interesse dos estudos iconográficos, para tornar visível a evolução das idéias e das
maneiras de pensar»... (p.35)
A iconografia é vista como uma disciplina
auxiliar na ótica da história da arte tradicional. Mas pode ser chamada aos
papeis principais, desde que ela pretenda dispor das chaves da interpretação e
inicialmente - supor que a distinção seja pertinente e que toda leitura já
significa uma parte da interpretação – daquelas da decifração , senão da
própria apreensão das obras de arte: a
obra de pintura ou da escultura sendo vista como uma imagem, que emprestaria o
essencial de seu sentido, senão seus efeitos, do que ele representa e
solicitaria, antes de qualquer investigação analítica, a ser traduzida em
palavras A iconografia possui como primeiro objetivo o de tratar a imagem como
um texto; mas ela não possui outro sucesso ali do que duplicar, através de um
outro texto partir do qual a imagem iria ter acesso à inteligibilidade, um
texto não mais para ser visto, mas para ser entendido. Como se a pintura e a
escultura não tivessem outro destino, em última análise, do que retirar-se para
o interior de sua materialidade sensível, atrás da significação que ela encontra para se articular no
elemento que é o da linguagem. Donde o pendor natural dos estudos iconográficos
– a constatação não se limita só à arte ocidental - quer que a referência a um texto, constituído
antes da arte, ou independentemente dela, apareça como a melhor garantia do
sentido em matéria de imagens; e isto, como observa Meyer Schapiro, mesmo
quando o artista não tivesse consultado diretamente o texto em questão e
tivesse se contentado em copiar ou em repetir –seja modificando, como
organizado – uma imagem já existente. Num caso como no outro, o que faz o «motivo» da arte derivaria, diretamente ou
não, de uma fonte escrita (mas que pode por sua vez remete à uma tradição oral)
: a tarefa do artista se reduziria definitivamente em traduzir em termos visuais
o argumento proposto pelo texto, quer dizer à figurá-lo, representá-lo, até
colocá-lo em cena através dos meios que são os seus : o texto, assim como muitas vezes no teatro, fazendo o motor da representação,
tanto no
momento de sua produção como no de sua recepção.
2
Seja
a imagem de um homem de braços erguidos e mais ou menos separados, e que
eventualmente é associado a duas outras personagens, colocadas aos seus
lados, a guisa de muletas: a
investigação iconográfica conduz a aproximar esse motivos, da qual a
recorrência é atestada na arte ocidental desde a época paleocristã, até ao
século clássico, retirado da passagem do Antigo Testamento narrando a batalha
dos filhos de Israel contra Amalec, para aí reconhecer a imagem de Moisés,
assegurando através de seu gesto e sua atitude, a vitória dos Hebreus conduzidos por
Josué, enquanto Araão e Hur sustentavam as mãos do profeta, as quais ficaram
firmes até o por do sol que viu a derrota dos Amalecitas («Quando Moisés
elevava as mãos, Israel era o mais forte, mas quando ele descansava sua mão,
Amalec era o mais forte» Êxodo 17, 9-13). Quer dizer que esta aproximação, que
se tenta qualificar como estritamente descritiva, se esta caracterização não
importasse a idéia de um nível puramente denotado da imagem que deveria ser
tomada como anterior às conotações que poderiam ligar-se a ela; quer dizer que
esta «tradução» da imagem em palavras, que permitiria assegurar-lhe um título,
e cuja operação se resumiria colocar em paralelo dois textos, um
escritural e o outro pictural, destinado
a ilustrá-lo; ¿ quer dizer que uma
semelhante transferência, da ordem do visível ao do legível seria suficiente
para esgotar a significação da imagem,
mesmo declarando o sentido, numa primeira aproximação?
Ora é nesse momento que a proposta de
Schapiro toma toda a sua dimensão. Pois «ilustração» possui, no sentido
etimológico da palavra, imagem sendo susceptível de esclarecer (Latim illustrare) o texto enquanto que ela
mesma se esclarece e porque a operação não jogaria nos dois sentidos? Se a
referência ao texto permite, com efeito, elucidar o tema ao qual se organiza a
imagem, esta não irá retornar sem
projetar sobre ele uma nova luz, a ponto de assumir a seu respeito valor e
função de comentário : não se designava,
havia muito tempo, de illustratio às
explicações e os exemplos didáticos destinados a acompanhar um texto antes que
viesse a designar as imagens que eram vistas como ornamentos, e que concorriam,
sob esta designação, com o seu prestígio
a sua «illustratio» ?.
Ma a
palavra illustratio, que no velho
francês teve o sentido de «aparição», indica muito bem a finalidade a que
obedece a imagem: trata-se, em todo caso, de dar para ver, de manifestar sob
uma forma concreta, um objeto, um fenômeno, um acontecimento, um pensamento,
que nas condições normais de apreensão ou de leitura escaparia a toda a possibilidade de percebê-lo de forma
sensível, ao menos de forma imediata. No caso de uma imagem destinada a
ilustrar um texto, esta operação
reveste-se – da mesma forma que o sonho em Freud – de todas a maneiras
de um processo de tradução que
não saberia estar inteiramente no lugar do conteúdo e que faz surgir uma forma,
susceptível enquanto tal, de desenvolvimentos imprevisíveis, de ordem visual
e-ou escritural, e que nessa operação ressaltando uma ou outra dessa duas
ordens. Ora é bem ali que irá se produzir – e produto, o termo deve ser entendido no sentido de producere, de um Vor-stellung, da colocação em representação – com a imagem do
Moisés com os braços erguidos. A análise das transformações históricas desta
imagem é o fio condutor deste livro, depois das interpretações que lhe deram os
primeiros cristãos, que viram a prefiguração da Crucifixão, até o valor de um
símbolo do ritual eucarístico que irá atribuir a famosa Bíblia Moralizada de 1245 (fig.02)[3],
na qual se reúne e resume em imagens, conforme à doutrina da análise
«tipológica» ou «figurativa», uma boa parte do trabalho do pensamento cristão,
com o objetivo de reconhecer nas narrativas do Antigo Testamento o anúncio da
Nova Lei[4].
Não há como deixar de sublinhar que é este ponto desta análise - sem
dizer nada dos desenvolvimentos que ela exige – abala a concepção do
trabalho que nos é familiar.
[1] Les mots et les images
[2] - Este texto, cuja primeira
versão apareceu em março de 1978 na revista Critique,
pp. 274-290, refere-se exclusivamente ao primeiro dos ensaios que aparecem após : «As palavras e as
imagens»
[3] BIBLIA MORALIZADA 1245
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:BibleMoralisee.jpg
https://www.khanacademy.org/humanities/medieval-world/latin-western-europe/gothic1/a/bible-moralisee
BIBLIA de
SÂO l UÍS
VIDEO: arte
medieval ilustrado na passagem para o RENASCIMENTO ITALIANO
[4] - Para os cristãos da Idade
Média, [...] toda a realidade e, com maior razão , toda a verdade da fé devia
ter nas Escrituras, conforme à doutrina do simbolismo tipológico que descobre na bíblia uma
estrutura em eco: a toda verdade do Novo
testamento responde uma mensagem anunciadora no Antigo Testamento». Jacques Le
Goff, O Nascimento do Purgatório,
Paris : Gallimard, 1981, p. 65. Ninguém analisou a estrutura da interpretação
qualificada ainda de «Figurativa» das Santas Escrituras («tipo» e «tipologia»
derivando do grego, «figura» e «figurativo» do latim) e demonstrando sua
influência sobre o pensamento medieval que Eric Aufbrach em Figura ( Berna, 1944 ; tradução fr.
Paris : Belin, 1993) e seus Escritos
sobre Dante (trad.Fr. Paris : Macula, 1999)
https://www.khanacademy.org/humanities/medieval-world/latin-western-europe/gothic1/a/bible-moralisee
BIBLIA de SÂO l UÍS
Fig. 02
- A BIBLIA MORALIZADA Palavra e Imagem
A
investigação iconográfico obedece a um princípio da inteligibilidade: toda a imagem produzida pela mão humana
responde como tal a uma intenção, senão a uma função de comunicação e deve
poder ser compreendida, prestar-se a decifração e à interpretação, mesmo que não seja fácil assinalar-lhe um
sentido, enquanto que sua significação última, parece muitas vezes escapar,
esconder-se. É dizer que o trabalho da iconografia – a observação foi feita
mais de uma vez – se revestirá com os procedimentos de uma investigação
policial, toda a imagem apresentando-se
como um enigma que solicitaria a ser resolvido. Mas é também que, nesta
pesquisa, o investigador não pararia necessariamente na camada mais superficial
do sentido, mas com vontade de levar adiante suas investigações, até encontrar,
por trás do sentido manifesto uma significação escondida. Dali a fascinação que
exercem sobre numerosos iconlogistas as interpretações que chamam para um
contorno de uma doutrina hermética ou de uma outra – pitagórico, astrológica,
alquímica, maçônica, etc. - , a uma significação oculta ou esotérica : como se,
para respeitar na imagem o que fizeram , no registro do visível, o enigma
constitutivo, deveria responder-se por um outro enigma, este articulado segundo
os caminhos que são os da linguagem, mas algumas vezes mais obscuro, que lhe
faria eco.
Fica ainda a questão de que, se existe um
enigma, é necessário encontrar a palavra para ele. Ainda lá a pesquisa
iconográfica, será naturalmente levada a dar o passo, sobre uma solução ou
explicação diferente daquela que trazem os textos, e de preferência um texto
que irá parecer como a fonte da imagem e na qual será suficiente olhar – como
Narciso no seu espelho – para decidir de sua verdade, de sua identidade.
Acontece a este respeito da iconografia como do connoisseurship: o processo de interpretação se reconduz
definitivamente ao processo do reconhecimento, da filiação. Em matéria de
iconografia, a pesquisa, na medida em que ela se estende e aprofunda, mas, na
medida que ela se pretende mais sutil e refinada, resume-se no final das contas
na produção de um texto suposto garantia
da leitura, a interpretação proposta: é nessa possibilidade afixada de uma
verificação das hipóteses, que ela avança sobre o sentidos das imagens da
pintura que a iconografia (e em menor degrau a iconologia) deve ser tomada por
uma disciplina científica.
Sabe-se que a pesquisa histórica, deu a
preferência para os documentos escritos sobre todos os outros. Ora se a
história da arte pretende, de alguma forma, hoje o título de disciplina
histórica, isso será possível sob a condição de se alinhar sob a exigência de
uma outra maneira de história: e além, esta história, nos seus objetos nas suas fontes, para não dizer
nada dos seus critérios de verdade. Do
ponto de vista estritamente da história, a história da arte não valeria uma
hora de trabalho se ela se limitasse a fornecer ao historiador apenas as ilustrações apropriadas para
enfeitar seus propósitos, assim como é possível constatar em manuais ou obras
ditas de síntese. Bem ao contrário, não para ser tomada, no seu ponto de
partida dos documentos figurativos e reconhecendo-lhes de fontes, que a
história da arte satisfará a tarefa que é precisamente a sob o título de
história.
É
tarefa, que a obra de Schapiro cumpre,
não é só isso : pois o que se escreve sob a rubrica de uma «história da
arte», decorre do fato de um campo
articulado de outra maneira e singularmente mais extenso e complexo do que
desejam os recortes acadêmicos aos quais escapa essa obra multiforme, que
abrange tantos domínios diferentes, que se abre a tantos contatos e pontos de
vista variados, desde o sentido estrito da palavra história, até a psicanálise ou da semiologia, e ao qual esse pequeno
precioso livro que é As Palavras e as
Imagens traz uma pontuação, senão
uma flexão decisiva. Isso constitui uma parte do grande trabalho realizado por
Schapiro que encontra aqui a sua justa perspectiva.
3
De passagem é necessário dizer (mas isso não
tem nada de um parênteses) a generosidade é uma das qualidades centrais deste
trabalho. Uma generosidade marcada por
exemplo – lá onde a maioria, tão absorvida na pesquisa das fontes ou dos
antecedentes, omite muitas vezes de
mencionar as suas,, quando não os
citam sistematicamente ao lado
(prática que é regra, hoje em dia, mas da qual Schapiro foi mais vítima do que outros) – pela referência constante ao
trabalho de outros.. Os escritos de Schapiro devem-lhe parte de sua elegância,
mas também uma virtude analítica : a impotência de citar suas fontes é sempre o
índice de uma resistência, de um obstáculo não superado, e que entrava o
progresso da reflexão, quando ele não se traduz regularmente por contra-sensos,
como me ensinou no seu tempo Merleau-Ponty
Mais ainda, no plano teórico convém gostar de modéstia nesse
trabalho. Pois Schapiro é sem dúvida, de
todos os historiadores de arte de sua geração, aquele que melhor compreendeu que não saberia se ali existe
história, sem um pouco de teoria, não mais do que a teoria que se organiza e deve se articular com muita história. Eu insisto, teoria, mas não
necessariamente metodologia, da qual estamos mais do que saturados. De fato. há
poucos textos mais excitantes ao espírito, entre os que nos são dados, nesse
domínio para ler, do que esse. Mas sob a condição de se submeter a algum
trabalho, pois Schapiro possui a elegância de deixar ao seu leitor tirar as
suas próprias conclusões teóricas que ele deseja e das quais ele fornece todos
os elementos. O que faz que ao lê-lo sintamo-nos melhores, como o queria
Michelet, o que marca de uma certa forma o «gênio», e que eu me sinta um pouco
mais inteligente.
Contudo não há nada mais contrário aos
objetivos de Schapiro - eis porque a observação não tem nada de parênteses,
pois o seu valor está em tomar cuidado - de se aproveitar desta circunstância,
para retirar de seus escritos uma teoria ou uma boa e uma forma devida, ou utilizá-los para fins especulativos e que ele
sempre recusou, cuidadoso da necessidade em deslocar as questões e de
sintonizar com os discursos os mais diversos, não para se utilizar deles para
elucidação dos procedimentos e das produções artísticas, mas cultivando a idéia
de colocar à prova esse objeto
essencialmente polimórfico – e que, que eu ousaria chamar de, perverso – que possui o nome de «arte».
4
Lá
onde a iconografia, sob o pretexto de nos levar a decifrar as imagens, não nos
dá senão para ler textos, e sem trazer sempre a prova explícita de que tal ou
qual representação efetivamente deriva (pois seria necessário, por todos os
meios, demonstrar que o artista teve conhecimento, de uma forma ou outra, dos
textos em questão, e não simplesmente fazer aproximações aleatórias ou
hipotéticas), Schapiro escolheu inverter os termos do problema para dedicar-se, em primeiro lugar em reencontrar
na ilustração – na imagem, como ele diz tão bem, ligado à palavra, the word-bound image- o traço, o caminho
de uma leitura. Tal é o propósito do primeiro capítulo de As Palavras e as Imagens, e que dá todo o sentido a este livro :
desvio que se pode descobrir entre um texto e sua ilustração pictural, a
correspondência muitas vezes problemática e algumas vezes espantosamente vago
entre a palavra e a imagem (p.31), longe de
que forneçam pretexto, como acontece tão
freqüentemente em iconografia, na busca de um texto que «colaria»de maneira
justa aos dados da imagem, são tomados em conta como objetos, que, longe
de ignorar este desvio, ou tratar
reduzi-lo, reconhece ali um efeito da leitura, em si mesmo significativo,
talvez produtivo. Schapiro lembra, a esse respeito o fato bem conhecido que,
nas primeiras Bíblias impressas, um mesmo ícone poderia retornar em diferentes
momentos do texto com a finalidade de ilustrar diversas narrativas das
batalhas, trocando-se o título da imagem em referência às funções do lugar que
ele ocupava no volume. Mas o que se intitula o efeito do contexto não possui no
único sentido: o de inscrever, num lugar desejado no texto do Evangelho uma
representação do Sacrifício de Isaac suficiente para levantar um problema de
interpretação que solicitava ser resolvido por aproximação da imagem, do que a
literal : uma aproximação simbólica e que, mediando a colocação em evidência de
tal ou qual traço da construção da cena ( a disposição das achas de lenha em
forma de cruz ou do carneiro no seu arbusto), levava a reconhecer, no tema o
sacrifício de um filho pelo seu pai, emprestando no Antigo Testamento, um
«antítipo» da Crucificação . Quer dizer que o texto, senão o objeto (uma cruz
decorada) ou o lugar ( um altar dotado de um paramento), empresta às imagens
que fazem o seu ornamento uma dimensão suplementar, a ilustração igualando-se a
um comentário ou à uma explicação didática, inclusive um exemplum no sentido medieval do termo.
Se essas duas aproximações de uma mesma
imagem são sempre possíveis, uma literal e a outra simbólica, não é somente
porque a imagem, por mais primitiva que ela seja, deva ser tomada para
significar – como falarão os iconólogos do Renascimento - «outra coisa daquilo
que ela mostra para ver[1]»,
nem que seja necessário chamar, para justificar uma interpretação simbólica ou
alegórica, em testemunho de um texto (assim como o faz o próprio Schapiro, em
relação a história da Susana e dos Velhos, mas par sublinhar melhor a
eventualidade de um desvio). O importante será antes marcar com pontos as
diversas modalidades do ligação ( pois existe ligação) entre uma imagem e um
texto : seja que esse laço ressalte da ilustração, na acepção que acabamos de
dizer; seja ainda como algumas palavras são suficientes; seja ainda da maneira
como algumas palavras bastam para dar um título a uma pintura, uma imagem
reduzida a alguns elementos encontra-se a funcionar – segundo a feliz expressão
de Schapiro – como um «um titulo pictural» [pictorial
title] que permitirá marcar no texto a passagem correspondente, ou como um
índice que convocará no espírito toda uma cadeia de associações : colocando-se desde então a
questão de uma articulação propriamente narrativa da própria imagem, e parece
que, ao ler Schapiro, a arte românica dirigia seus forças antes de Giotto, e
três bons séculos antes que Alberti, determinando para a pintura a tarefa da representar a istoria Mas se o emblema pode reduzir-se
a uma simples marca, este «ornamento relatório» (como significava emblema
em latim) pode igualmente
comportar numerosos detalhes, figuras ou acessórios, do qual o texto não
conta, até – sem esperar para que se constitua
a cena da perspectiva – todos os elementos de uma colocação em cena, de um
quadro representativo, senão um lugar teatral : a Adoração dos Magos no oferece
um exemplo clássico, e cujo cortejo irá se ampliar até se desdobrar, como se vê
em Florença, no palácio Medicis, sobre as quatro paredes de uma capela
principesca.
Ora todas essas análises não tem sentido do
mostrar, como Schapiro a emprega, que a oscilação do literal ao simbólico que é
motor da decifração das imagens e de sua interpretação que já está inscrita na
leitura que o próprio artista já tenha feito anteriormente do texto, sem que ainda ali se possa
operar sempre a separação, nesta troca, neste deslizamento, entre aquilo que é
o feito do emissor da mensagem e aquilo que pertence ao seu destinatário.
Mesmo, lá onde parece que o artista se ateve a uma leitura literal, ainda que
muitas vezes parcial, sempre fica a possibilidade de uma interpretação
simbólica, na medida que é verdadeiro que desde os inícios da era cristã a
idéia tenha-se imposta uma leitura
«figurativa» do Antigo Testamento : a imagem de Jonas na sua baleia, de Daniel
na fossa dos leões, como também aquela de Moisés de pé sobre a colina, com os
braços erguidos, não devem ser considerados somente pelo seu valor descritivo,
mas como a metáfora, e ao mesmo tempo o anúncio articulado na forma e nos
termos da Lei Antiga, acontecimentos e ensinamentos que desembocam na Nova Lei.
Mas a leitura mais literal não acontecerá sem conseqüências : quando o pintor
do saltério de Utrecht[2]
escolheu ilustrar a palavra do salmista:
«Acorda-te. Senhor! Por que dormes?» (Salmo 43) pela imagem do próprio
Deus, deitado numa cama Sendo acordado por Anjos (fig.03),
deve-se concluir que Deus, se é capaz de dormir, seja da mesma forma, capaz de sonhar, - seja um tema do qual, eu da
minha parte, não duvido, mas sem poder trazer a
prova, a «fonte» textual ou icônica, que algum autor mais ou menos
herética tenha explorado?
[1] - «Le immagini fatte per
significare una diversa cosa da quella che si vede com l’occhio» Cesrare RIPA,
Iconologia (1592) «Proemio»
Fig.03
Saltério de Utrecht ilustração da
palavra do salmista: «Acorda-te. Senhor!
Por que dormes?» (Salmo 43) pela imagem do próprio Deus, deitado numa cama
Sendo acordado por Anjos,
Ao colocar assim a ênfase, na leitura do
texto, na busca característica do artista, se é conduzido a certas observações
que não teriam escapado a Schapiro, mesmo se ele não entendeu, ao menos nesse
livro, o destino que merecem. Não são
somente os intérpretes (historiadores, iconógrafos e iconólogos) que estão
submetidos à lapsos, com tais reveladores, e que ele gostaria de recensear.
Tais erros podem ser cometidos pelo próprio artista, senão pelos copistas ou
tradutores do qual ele tinha texto sob
os olhos. Schapiro cita o exemplo de um
erro de tradução, que teria conduzido o pintor da Bíblia Moralizada ao representar Josué brandindo um escudo por
sobre sua cabeça, lá onde a versão
hebraica do Antigo Testamento fala de uma lança (Josué, 8). Nesse mesmo
sentido, pode-se citar a confusão na qual caiu Uccello se deve crer em Vasari, e que o teria levado a
substituir, uma abreviação (camel.),
pela imagem de um camelo (Camello) em
aquele do camaleão (cameleone), e, de
fato e o símbolo do elemento «Ar», no
lugar de um «pequeno lagarto» toma forma uma «grossa besta
desproporcional». Quando aquela que
teria cometido Luca Signorelli, em Orvieto[1],
quando para ilustrar a passagem da Divina Comédia em vez de representar o anjo
do Purgatório conduzindo as almas numa leve barca, in un vasello anelletto, ele colocou nas mãos do anjo um vaso (vascello) e esquece o navio (fig.04) .
[1] SIGNORELLI Capela de São Brizio Orvieto https://it.wikipedia.org/wiki/Cappella_di_San_Brizio
Fig.04
--Luca Signorelli, detalhe dos afrescos da
Catedral de Orvieto (c. 1.500 ). Ilustrando a passagem da Divina Comédia onde
Dante evoca «o anjo que atravessa o rio com frágil barco»(Purg. II 40-45)O artista
confunde vasello (navio) com vascelo (vaso): ele coloca uma copa na
mão esquerda do enviado celeste
Mas
o que nos garante, em todos esse exemplos, que o erro aparente, o lapso
pretendido, não obedece, da parte do pintor a uma intenção deliberada, e
que exigiria ser interpretada como tal,
da maneira como na escultura romana, como Schapiro observou em relação ao pilar
de Souillac[1] (fig.05) oferece
vários exemplos de transbordamento e
«fantasias», e «chistes» marginais, que um analista versado na
literatura psicanalítica, seria tentado de interpretar num sentido inteiramente
diferente do que aquele que se recusa a ver na decoração de uma igreja medieval
outra coisa que a expressão de um programa perfeitamente coerente do ponto de
vista teológico?
Fig. 05 – COLUNA (mainel)
de SOUILLAC (1.120 – 1.135) ¿A
Imagem e o inconsciente?
O
paradoxo que pretende que a arte – e é ai que reside a sua perversidade – possa
retirar, em todo conhecimento a causa, os caminhos que são aparentemente os do
inconsciente, e imitar as operações,
para atingir, de uma única vez, a um verdadeiro polimorfismo de sentidos.
5
Sejam quais forem as reservas às tentativas
para aplicar os métodos da iconologia –até a sua vã «hermética» - aos produções
da antiguidade clássica, e todos os cuidados que Panofsky teve em limitar o campo na época em que assistiu o triunfo do pensamento emblemático e alegórico,
Schapiro teve o mérito, ainda ali, de deslocar o problema, lembrando, no que concerne
à arte cristã, que o comentário bíblico deu lugar, em particular entre os
exegetas alexandrinos, a uma verdadeira super oferta hermenêutica, não sendo fácil de operar e permitindo, entre
uma interpretação literal, fundada sobre o sentido manifesto das obras, e uma
interpretação simbólica, concedido a seu sentido latente, não mais do que os
pensamentos que se supõe ter habitado o artista, enquanto que ele fazia a obra
e aquelas que faltam para alimentar um
intérprete avisado de existência desta literatura. Não é mais necessário interrogar
as próprias obras para tentar determinar em que medida elas puderam ter lugar,
ao mesmo tempo que o instrumento, de um trabalho de pensamento específico, e de
pesquisa e até que ponto a constituição de um texto pictural obedece aos
princípios análogos a aqueles que regem o desenvolvimento do comentário
escritural.
É possível dizer que a leitura, feita por um
artista medieval de textos que remontavam à épocas muito longínquas, senão
míticas, colocam na saída do
jogo, um problema do próprio fato de que a diferença que separava a redação dos textos de sua
tradução em termos visuais : diferença
temporal, diferença histórico, mas também separação cultural, e inicialmente exegética. Schapiro
de maneira muito viva redescobre a luta travada, na linha da tradição rabínica,
pelos pintores que trabalhavam para clientes judeus, contra a interpretação
cristã do Antigo Testamento : onde os cristãos queriam ver, na história santa,
a prefiguração de um episódio do Evangelho, o comentário rabínico tentou constantemente
apagar a essa interpretações. Mas, como
insiste acertadamente Shapiro, ele não pode fazer com que o texto da Bíblia não
se apresentasse, na sua própria estrutura, como um texto messiânico, fundado
como tal sobre um jogo complexo de antecipações e de repetições, de esperas e
de acelerações: para iniciar com a lei mosaica, que deveria encontrar seu
duplo, sua duplicatum, no
Deuteronômio. A frase do apóstolo Paulo: «Essas coisas foram figuras daquilo
que nos concerne» (I Co, 10, 1-6) que Pascal irá retomar, adquire uma noção do
signo e da figura que encontra
sua justificação nas escrituras. Ora essa mesma noção fez um dos impulsos mais constantes da iconografia
cristã, esperando que o Renascimento viesse renovar o velho fundo iconográfico
sobre o qual haviam trabalhado os artistas da Idade Média, mas sem ali ainda
tirar partido de um processo de semantização comparável.
A Bíblia
Moralizada apresenta-se como um imenso livro de imagens, na qual cada cena,
emprestada do Antigo Testamento, é acompanhada e se duplica de uma segunda
imagem, destinada a explicitar o sentido simbólico e anunciador. Esta
disposição, toma todo o seu sentido, se se considera, como o faz Schapiro, que
essas imagens não ilustrem um texto pré existente e que as legendas dos quais
elas se fazem acompanhar não tenha outro objeto do que manifestar a conexão.
Com esse manuscrito, possui-se a preocupação com um verdadeiro discurso de
imagens no sentido em que o entendiam os iconólogos do século XVI, e que se funda sobre junção de duas
representações estabelecidas, uma em posição de símbolo, e a outra simbolizada, sem que a ligação entre
significante e significado tenha nada de arbitrário: «A analogia remete para uma intenção divina que determinou, seguindo uma
ligação causal complexa, os dois
acontecimentos colocados em imagem e conexão histórica» (p.82). É a transferência na ordem espacial que é
aquele da visibilidade, da figurabilidade, a passagem do diacrônico ao
sincrônico que faz o motor do signo (da «figura»), como ele faz a o da
interpretação.
Se o sentido, do qual está investido, mudou no mosaico de Santa
Maria Maior (século V), que representa a batalha contra os Amalecitas, até
chegar a imagem correspondente da Bíblia Moralizada do século XIII (fig.02) [1] isto não acontece só, como sublinhou
Schapiro, porque a pré figuração da Cruz deu lugar a um signo anunciador do
ritual da missa: como podia acontecer, numa época anterior, quando o esquema da
personagem de braços erguidos foi usado para representar o Imperador, sustento
da Fé , a relação da simbolização, da pré figuração, joga no entanto entre um
episódio histórico, senão mítico ou legendário, e uma prática contemporânea.
Mas o jogo de espelhos entre uma e outra das cenas ( que a Bíblia Moralizada inscreve alhures em medalhões circulares
análogos aos pequenos espelhos em marfim esculpidos que conheceram grande voga na época) não
constitui um o motor da simbolização. Para citar o Parsifal de Wagner:: «Zum
Raum wierd hier die Zeit». «Aqui o
tempo faz-se espaço». E até que o
edifício cristão, que não era até aquele momento lugar de uma operação, de uma
transmutação, de um transporte análogo do tempo e do espaço, da recitação até a
procissão, do ritual ao teatro.
Mas para que essa energia possa jogar
plenamente era necessário ainda que, de uma imagem até outra, o jogo de
espelhos não só se referisse aos conteúdos e que pudessem se articular em
termos formais: a atitude dada à Moisés, na batalha contra os Amalecitas, de
pé, os braços erguidos, fez, durante muito tempo, aquele de Cristo na cruz,
antes de entrar em ressonância com aquele do sacerdote no altar. A Bíblia Moralizada oferece outras
amostras desse gênero de encontros: a
imagem do Cristo carregando a cruz imita quase exatamente, até na
disposição das achas de lenha em cruz,
aqueles de Isaac subindo para a fogueira, enquanto que sobre a página
que faz a frente para essa, é Abraão, o pai sacrificador, que se apresenta como
os braços em cruz, acima de uma imagem da Crucifixão. Observa-se que ao menos no registro visual as
posições do significado e do significante agora se invertem: Pois as achas de
lenha de Isaac assumem a forma da Cruz, e se atitude de Abraão pré figura
aquele de Cristo, é sob a condição, para uns e o outro, de se dobra ao esquema
da cruz, o efeito da semantização jogam tarde demais, em sentido oposto da
continuidade histórica. A mesma observação vale para o manuscrito hebreu
produzido em Paris ao redor de 1278, do qual Schapiro dá conta, e no qual
artista se empenhou em contradizer aproximações, senão negá-las, pelos meios
que devem só à figuração : Moisés se dá a ver de frente, as mãos erguidas, mas
colocadas sobre o peito, como para esconjurar o sinal da cruz.
Ora a imagem do sacerdote, na Bíblia Moralizada, não responde a esse
dado, o oficiante sendo representado de perfil, ou que. Donde se introduziu uma
nova polaridade significante, que não joga sobre aproximação de duas imagens
mas sobre a oposição entre dois modos de apresentação, ou duas «vistas», uma
face a outra de perfil, onde Schapiro, retomando de forma bem calculada
evidentemente (e um pouco retorcido) o conceito que Panofsky introduziu para
tratar da perspetiva, não exista em reconhecer «formas simbólicas», mas cujo
valor será essencialmente polar,
oposicional, dependendo em todo caso de sua
colocação em ação num contexto
dado. Se a posição que a Bíblia Moralizada determina para Moisés
implica, para além do «tema de condição» ali reconhecido por Schapiro, uma
forma de sacralizar a figura, e que ela opõe-se à apresentação de perfil que é
o feito do sacerdote, do qual ele manifesta ao contrário o envolvimento numa
ação concreta, empírica, contemporânea. Em definitivo as duas formas são
simbólicas, na sua própria oposição, a
qual decide sobre o sentido que convém consignar, na forma de um signo cristão
na oposição entre o Antiga e a Nova Lei. Mas isso não é para dizer que esse
sentido seja todo arbitrário, ou convencional : a comparação a que Schapiro
introduz, entre os jogos dos ângulos de vista e das cores (pp.120-121), é perfeitamente fundada
a esse respeito: em toda representação
que coloca em jogo um par fortemente contrastado, essa qualidade
fenomenológica e-ou expressiva a que se prende, a um ou outro, dos termos
reforça no outro a qualidade oposta, Na proporção na qual a imagem toma figura
de proposição articulada, se tem pela frente os mesmos símbolos e os
mesmos valores, como o queria Saussure,
e como tais, relativos[2].
6
O
propósito que Schapiro possui em As
Palavras e as Imagens, ultrapassa, e de longe, a iconografia tradicional.
Muito melhor, ele conduz a uma inflexão radical, desde que se trata não somente
de decidir o sentido de tal ou qual imagem e daquilo que ela representa,
procedendo, como falam os matemáticos, por aplicação, a partir de um texto ao
qual se fará corresponder um a um os termos com tal ou parte da imagem, e
procurar como isso funciona, ao título de dispositivo significante, senão na
proposição pictural [pictorial statement], interrogar-se até sobre o que um tal
processo revela de um modo de funcionamento simbólico muito mais geral.
Desde
então percebes-se que o seu livro tem por objetivo encontrar o seu lugar, na
origem na coleção intitulada « Approches to Semiotics», «Acesso à Informática».
Mas se o projeto de Schapiro é de inspiração semiológica no sentido o mais
geral, mas também vago do termo, ele não assume menos, ao olhar dos teóricos
que reinam na matéria, como da história da arte acadêmica, um alcance
essencialmente crítico, sabendo-se que Schapiro
dedicou-se a um estudo fundamental das propriedades significantes – qualidades do campo, do
enquadramento, da orientação, do posicionamento, etc, - e em geral, a tudo
aquilo que, nas imagens da arte, não diz diretamente da mimeses ou de uma iconologia, e como tal, não se presta para à uma tradução[3].
O problema colocado em As Palavras e as
Imagens pode parecer, ao menos no seu enunciado inicial, de uma aproximação
mais clássica, senão a tradicional : se
o artista tem por tarefa traduzir uma
mensagem verbal por uma imagem visual, a inteligibilidade disso repousará em
definitivo sobre o fato que os objetos e as ações significadas pelas palavras devem prestar à
representação sobre a espécie de formas reconhecíveis em si mesmas (pp.31-32).
Ora todas as análises que fazem esta enunciação ,opõe-se a ideia de
uma correspondência termo a termo entre o texto e as imagens tão bem, que a
hipótese sobre o qual funda-se o projeto de uma semiológica geral e que queria
que a passagem se opera sem resto de um registro para outro campo semiótico, do
qual a unidade seria a garantia para a possibilidade de uma tradição a
recíproca e geral..
Parece que durante um tempo muito curto, que
Benveniste havia sabido formular, melhor que todos os outros, o problema, que
seria de uma semiologia da pintura, lá
onde «as cenas figuradas são transposição icônica de narrativas ou de
parábolas e reproduzindo uma verbalização inicial» : «O verdadeiro problema
semiológico, que em nosso conhecimento, ainda não foi colocado, seria a
pesquisa COMO se efetua essa transposição icônica, quais são as
correspondências possíveis de um sistema para um outro, e em que medida, essa
confrontação, se deixaria seguir até a determinação de correspondências entre
SIGNOS distintos[4]»
. Ora é para resolver esse problema, ao menos para colocá-lo, que Schapiro trabalhou
em As Palavras e as Imagens. Mas o
resultado dessa confrontação não é aquele que se poderia esperar. Certo, a
questão da figurabilidade, da Darstellbarkeit
no sentido freudiano, esta bem no centro da pesquisa, quanto as observações
teóricas que essa convoca. Mas como por aquilo que é sonho, a análise
iconográfica, tal com a concebe Schapiro, não tende a constituir uma gramática,
muito menos um léxico. De fato, a questão do sistema jamais é colocada, quer se
trate de correspondências entre os enunciados verbais e as proposições
icônicas, ou do sistema de signos, aos qual se conduzir a pintura, se a
hipótese de uma tradução termo a termo, deveria ser conservada. E quanto à
noção de signo, sob cujo título procede
esta pesquisa, o menos que se pode dizer é que ela aparece mais problemática no
final do que no seu início.
Com efeito, essa é a originalidade da pesquisa
de Schapiro, que, postulando a existência de uma ligação entre a imagem e a
palavra, transforma de fato a questão.
Como, se para ele, tratasse-se menos de mostrar que toda imagem, é por assim
dizer, presa a uma cadeia linguística da qual ela emprestaria sua
articulação, do querer restituir algo do
trabalho de transposição e, como falava Benveniste, de seu COMO. Ora a ideia que se impõe, na leitura de As Palavras e
as Imagens, é que ali existe menos a transposição de um sistema de signos
para um outro sistema do que a travessia recíproca do texto através da imagem e da imagem através do texto. Da forma
pela qual uma língua artificial não saberia constituir-se, do que se conectando
com a língua natural, a potência
semiótica característica da pinturas é medida pela capacidade de mostrar essa
arte em falar junto com tal ou qual
texto, tal ou qual discurso. O que manifestam as análises de Schapiro, é ao
mesmo tempo a realidade desta «tomada da fala» e sua articulação propriamente
semiótica. Pois, se a pintura, sabe fazer surgir no texto da Escritura tal
imagem como para como signo e o usar como tal, se o texto cria signo para a pintura como a pintura cria signo para o texto,
esse deslizamento da instância das palavras para aquele das imagens não é sem
analogia com aquele que impulsiona a própria língua. E não é por acaso que
Schapiro acredita revelar na oposição face-perfil uma relação ao do sujeito
percebendo às figuras representadas que faz eco para a polaridade das pessoas,
na acepção pronominal da palavra, onde o próprio Benveniste reconhecia uma das
condições estruturais do exercício da linguagem :
“ O rosto de
perfil está separado do observador e pertence, com o corpo em ação (ou inerte e
sem objetivo), a um espaço que os outros perfis repartem sobre a superfície da
imagem. Ele corresponde aproximadamente à forma gramatical da terceira pessoa :
o pronome «ele» ou «ela», não especificado, seguido da forma verbal
correspondente; em vez disso o rosto voltado para o exterior parece animado de
uma intenção, de um olhar latente ou potencialmente dirigido ao espectador, e
correspondendo ao papel do «eu» na linguagem, associado ao «tu» que é o complemento
obrigatório” (infra, p. 95)
Ora, existe ali mais do que uma metáfora: a
prova é que uma segunda língua não saberia tomar forma a não ser seguindo os
caminhos da constituição da língua natural, e arremedar as operações[5].
Mas o que quer dizer «segunda língua», e «segunda» em relação a que?. Ainda lá,
a referência a Freud e ao conceito de figurabilidade
se impõe. Pois o problema não é tanto saber qual relação que os semióticos
russos chamaram o «sistema modalizante secundário» - entre os quais deveria
figurar a pintura – entretém com a linguagem[6],
o de procurar em que a operação de tradução, da transferência do registro
legível para aquele visível (e
reciprocamente) pode esclarecer o funcionamento do discurso, senão da própria
linguagem. «já se tem como adquirido , escreve ainda Schapiro, que a imagem
pintada [picture]corresponde ao
conceito ou à imagem mnemônica [memory
image]associada à palavra»(p.31) diga-lo na forma pelo qual os
editores do Curso de Linguística Geral, creram poder estabelecer em posição significativa o significado da
palavra «arvore» sob a imagem de uma porta dupla, que no entanto está muito
longe, na sua especificidade, de dar conta da extensão plena do conceito[7].
[2] - Ferdinand Saussure, Curso de Lingüística Geral, edição
crítica de Tullio de Mauro, Paris : Payot, 1972, p. 158 sq. « O valor
lingüistico considerado no seu aspecto conceitual»
[3] - Cf. Meyer Schapiro, «On
some Problems in the Semiotics of Visual Art : Fild and Vehicle in Image-
Sign», Semiótica, I (1969), n° 3, pp.
233-242: retomado in M. Schapiro Theory
and Philosophy of Art : Style, Artista, and Society, New York, 1994, pp.
1-32,. Trad. Fr. Por J.C. Lebensztejn «Sobre alguns problemas de semiótica da
arte visual : campo e veículo dos signos icônicos», in Critique, n° 315-316
(ago-set. 1973) pp. 843-866; retomado in Schapiro, Style, artiste, sociéte. Paris : Gallimard, 1982, pp. 7-34
[4] - BENVENISTE, Émile,
«Semiologia da Língua», in Essais de Linguistique
générale, t. II. Paris : Gallimard, 1974, p. 59, nota 1
[5] - Cf. DAMISCH, Hubert «La
prise de langue e le faire signe», in Prétexte
Roland Barthes,Coloque de Cerisy, Paris : UGC (10-18), pp. 394-418.
[6] - Sobre a noção de «sistema
modalizante secundário» e a idéia de uma pluralidade dos «códigos artísticos»
cf. Iouri Lotman, Struktura
khudozestvenneogo teksta, Moscou, 1970: trad. Fr. La structure du texte artístique, Paris : Gallimard, 1973
[7] - Saussure, op. Cit.. p. 99
Fig. 06
– Os editores do Curso de
Linguística Geral, creram poder estabelecer
em posição significativa o significado da palavra «arvore» sob a imagem de uma porta dupla,
É
dizer demais que a proposição segundo a qual a imagem pintada corresponderia ao
conceito é ir muito longe, e Schapiro não deixou de observar, em vista das
imagens do assassinato de Abel por Caim, que um verbo por si mesmo não possui nenhuma
caracterização figurativa da ação como o de «matar»: na ausência de toda a
indicação explícita, é necessário ao ilustrador colocar nas mãos do assassino a
arma, a ferramenta, o instrumento ( o mais das vezes o maxilar de um asno), que
servirá para esse assassino, e cuja escolha não seria imune de consequências,
teológicas ou outras[1].
Mas o que dizer então de noções ainda mais abstrata, ideológicas, ou mesmo
conceituais ? Ainda lá Schapiro fornece preciosos exemplos : o fato que, na
representação do Pentecostes, a pomba descendo ao mesmo tempo sobre a figura do
Cristo e a mão de Deus iguala , na
leitura que ele propõe, existe um enunciado pictural do filiolóquio sobre o qual se dividiram as duas igrejas, as do
Oriente e a do Ocidente(p.34); e vimos, sobre
o exemplo de um manuscrito para pinturas hebraicas do século XIII[2]
(fig.07) como uma proposição pictural poderia
ser interpretada como negação da
outra. O fato é tanto mais notável, que a proibição que a lei mosaica
estabeleceu sobre as imagens, poderia ter eliminado uma tal operação.
[1] - Infra, p. 33. Para uma análise
mais desenvolvida, cf. Meyer SCHAPIRO, «Cain’s
Jawbone thet Did first Murder», Art Bulletin, 24 (1942), pp. 205-212ç
retomado in M. SCHAPIRO, Late Antique,
Early Christina and Mediavel Art, Selected
Papers, II, New York, Brazillier, 1979, pp. 249-305.
[2] Pintura
Hebraica do sec. XIII http://www.pesquisamundi.org/2013/12/vaticano-e-oxford-abrem-manuscritos.html
Fig. 07– Manuscrito para pinturas hebraicas do século
XIII como uma proposição pictural pode ser interpretada como negação da outra.
Para que os efeitos desse
gênero sejam possíveis, ainda é necessário que o próprio texto se preste a
representação para a figuração, e que de
uma ou outra maneira ele justifica, chamando-o as pretensões da pintura,
querendo falar com ele (o que os iconoclastas recusam). Ora é exatamente isto que
se vê quando o pintor extrai de um texto o tal traço formal cujo eco
repercutirá logo após na pintura como na própria literatura. Se a história de
Moisés e dos Amalecitas aparece como o antítipo da Crucifixão, é que a imagem
de um Moisés, de braços em cruz, se impôs antes : seja em imagem que
sintonizava como texto, mas que não o exigia necessariamente, o artista
descuidando uma outra indicação, esse literal, que só deveria ser reconsiderada
muito mais tarde, e que queria que Moisés no final do dia tivesse se sentado
sobre uma pedra, detalhe que os iluminadores carolíneos deveriam interpretar
como uma pré figuração do trono imperial. Quanto ao sinal da cruz, teria
servido de veículo aos mais variados conteúdos, depois gesto de oração - orante
Paleocristão (fig.08) [1]
. até
a atitude que é a do sacerdote no momento da realização do ritual da missa,
prestando-se para um jogo de ecos sempre renovados no registro textual como
aquelas das imagens, tão bem entre texto e imagem.
Fig. 08– O sinal da cruz, teria servido de veículo aos
mais variados conteúdos, depois gesto de oração - orante Paleocristão. até a atitude que é a do sacerdote no
momento da realização do ritual da missa, prestando-se para um jogo de ecos
sempre renovados no registro textual como aquelas das imagens, tão bem entre
texto e imagem.
É lá que Schapiro mostra
ainda, a propósito da história de José
que o Saltério de São Lucas
representa precipitado no poço pelos irmãos, de braços em cruz, para que o
pintor o pinte se despindo na mesma atitude É pois falso de acreditar, como o
queria Benveniste, que a relação significante das pinturas são características,
ou sejam à de descobrir nos limites de uma composição singular, e que em
definitivo não existe sistema – para retomar
a fórmula de Jean- Louis Schefer – que a do quadro[1].
Acontece para as imagens de arte como acontece para os mitos segundo
Levi-Strauss : eles se pensam e se
conjugam entre si. Mas também vão pretender construir, conforme o desejo de
Jakobson, um modelo geral da produção
e da percepção dos signos, tão bem como de modelos específicos de diferentes
sistemas de signos. Isso não implica, bem ao contrário, que seja sem sentido a
questão que o próprio Jakobson colocava, tocando na relação estrutural enquanto
que percetivos entre os signos visuais e os signos auditivos, e as relações que
se podem fazer entre um registro ao
outro[2].
A esse respeito, as análises de Schapiro,
concorrem ainda para impor ideia de que
toda tradução visual de um enunciado discursivo, funda-se, no final das contas,
sobre a dimensão metafórica da língua. Para não dizer nada da propriamente
especial, «projetivo», que Wittgesntein do Tractatus
pretendia reconhecer para todos enunciado, considerado tanto como Bild ou picture e como «modelo da realidade» que ele pinta[3]
:a quem faz secretamente eco a distinção marcada em As Palavras e as Imagens, entre imagem [image] (ela que em geral é especificada como «visual» «mnésica»,
ou ainda como «ligada à palavra»), e pintura [picture] ,daí o retorno
sobre a forma adjetiva nas alocuções tais como pictorial statement ou pictorial
title revestes-se nesse contexto de um relevo particular. Sem que ali haja
nenhum paradoxo, o trabalho de pintura toma simultaneamente sobre a forma da
iconicidade do que é característica da linguagem e sobre aquilo que esta arte
mesma comporta, na lateralidade, de fato elementos e meios não-icônicos[4].
A que junta-se, em termos de
figurabilidade, de Darstellbarkeit,
esse dado de experiência do qual Freud deu-se conta e quer que seja sempre
possível substituir um texto abstrato por um texto mais imaginado e que lhe
seja ligado de uma ou outra maneira, por simbolização, por alegoria, por
oposição, etc[5].
A respeito dessa operação, que faz parte
integrante do trabalho de transposição visual, o papel da arte, aquele da
pintura, não possui nada de «secundário» « tudo acontece ao contrário como se a
linguagem – e a fortiori a linguagem
poética – fosse trabalhada, no seu próprio funcionamento, pela questão da
figurabilidade. E isto até ao sistema, a iconicidade e a metaforicidade que lhe
é própria tendendo naturalmente a se completar e se acabar, como gostava dizer
Gaston Bachelard, no reino da imagem, mas não sem que no processo, que é processo do pensamento (no sentido em que
Freud falava de um «pensamento do sonho»), o imaginário não interfere
necessariamente com o simbólico. De tal forma que se seja tentado de substituir
à tradição recebida do adágio clássico que estabelece um paralelo entre poesia
e pintura – ut pictura poesis, « a
poesia como a pintura» - uma outra tradução, essa deliberadamente anacrônica,
riscada, e que frisa o contra-senso: « para que haja pintura, há necessidade
que exista poesia», e reciprocamente, uma não caminhando sem a outra. Ou para
dizê-lo de outra forma, assim que nos convida Schapiro, por uma caminhada
decisiva, desde o intitulado -
intraduzível em francês – de seu livro, Words and Pictures ( e não Words
and Images, como se poderia esperara, e
como que a vulgar teórica) : o fato é que
num momento, de um título para outro, o trabalho da pintura possa, ou
deve, passar pelas palavras e, seja devido ao seu corpo defensivo, e com
eles armando laços, em correlato, falando semioticamente, na sua forma como na
sua substância, no seu fundo escritural, toda expressão lingüistica participa
pouco ou muito do regime dito «pictural» da imagem.
Hubert Damisch
[1] - Cf. BENVENISTE, Emile, «Semiologia Língua», in Ensaios da lingüistica geral, Paris :
Gallimard, 1966, t. II, p. 59, e Jean-Louis SCHEFFER, Cenografia de um quadro, Paris : Le Seuil, 1969, pp. 161-194.
[2] - Cf. JAKOBSON Roman «On Visual and Auditory Signs» Phonetica, IX (1964); trad. Fr. «Da relação entre signos visuais e auditivos» in
R. Jakobson, Ensaios de Lingüística Geral, t. II, «Relatórios internos e externos da linguagem», Paris : Minuit, 1972,
pp. 104-112.
[3] -«Das Bild ist ein Modell der Wirklickeit {...}.«A imagem é um modelo
da realidade» ... «[Es} kann jede Wirklichkeit, deren Form es hat» «[Ela] pode pintar cada realidade que possui
alguma forma» WITTGENSTEIN, Ludwig, Tracataus logico-philosophicus,
(aforismos 2.12 e 2.171)
[4] - Cf. supra,p. 21 e nota 1.
[5] - FREUD, Sigmund,
«Matapsycologische Ergänzung zum Traumlehre», Gesammelte Werke, X p. 419, nota
1; trad. Fr. «Complementos metapsicológicos para a teoria do sonho», Paris :
Gallimard, 1968, p. 135-136, nota 1
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