Em época da falta de emprego, mas não de trabalho, surge a necessidade de elucidar e associar CARGO e FUNÇÂO, para equacionar esta contradição. Todos estão na busca de algum cargo, mas poucos a conhecem, ou a aceitam, a função inerente a este cargo.
O triste panorama das crianças e de moradores de rua do Brasil,, é índice de que alguém não cumpriu, ou não está cumprindo, a sua função de elo entre o desvalido e quem acumula os bens, que deveriam ter função social.
No plano da distribuição e da circulação do poder político é sabido que o Estado português é um dos primeiros e mais antigos do Ocidente. Este Estado capitalista precoce foi possível graças a contratos entre cristãos, judeus e muçulmanos que permitiram ao rei cristão instalar um Governo central. Por este contrato a nobreza portuguesa não seria hereditária, ao contrário da Espanha onde o cargo nobre acompanha a descendência. Outra diferença era que este cargo nobre português seria adquirido e comprado da corte o que permitia a sustentação da estrutura governante e selecionava os mais aptos e empreendedores do reino. No caso espanhol, além de hereditário, a sustentação desta estrutura dependia do governo. Este empreendedorismo lusitano original - proveniente do poder originário da nação – abriu as portas para empresas extraordinárias provenientes desta minúscula terra. Evidente que o modelo nunca foi aplicado na pureza do seu contrato original e corrompido facilmente por uma nobreza decadente. Esta nobreza entendeu que o cargo o livrava do trabalho com as mãos que passou a ser considerado uma desonra. A solução foi a escravidão onde o dono pensava e posava como nobre, enquanto a mão escrava trabalhava.
No Brasil, o período colonial, repassou ao Império este contrato do cargo conquistado. Instalada a República este conferiu o titulo nobiliárquico brasileiro aos cães . Os títulos de “duques”,a as “princesas” e os “barões “ foram conferidos aos peludos que latiam e tinham quatro patas
Contudo este expediente - de mofa da nobreza - não uniu cargos e funções. Ao contrário: a patuléia, que empolgou algum cargo republicano, passou a implementar a separação radical entre cargo e função, sem o menor conhecimento de um e outro e, muito menos, das suas conexões, competências e limites. O autor deste blog foi ameaçado de prisão por alguém se dizendo juiz de comarca da fronteira, por ter-lhe cortado o caminho numa banguela de madeira sobre um córrego no litoral ! Evidente que este ocupante de cargo público estava muito longe de suas funções e muito menos esclarecido em relação aos limites destas funções.
Contudo de uma forma geral, na cultura sul-rio-grandense não há distinção entre quem manda e quem executa o trabalho. Patrão e peões convivem lado a lado nas lides do campo como no galpão, empresário e empregados assumem um trabalho coletivo e sem distinções. Este fato chamou a atenção do espanhol, o escultor e o arquiteto Fernando Corona (1895-1979). Ele acompanhou na intimidade e partilhou a vida, no dia-a-dia, a partir de 1912, da criatura humana de Porto Alegre. A imagem que ele captou está fixada em seu diário(1937, fl 373). Ali ele anotou:
“Porto Alegre como capital do Estado é a cidade mais democrática de todas, dando exemplo de fidalguia a qualquer um. A sua riqueza foi conquistada com o trabalho de seus habitantes. Porto Alegre republicana foi sempre, desde sua formação democrática. Não tenho lembrança de ter visto na capital – milionários viver de rendimentos, a não ser o produto do seu trabalho. Desde que aqui cheguei notei que um simples pedreiro ou carpinteiro já era proprietário de seu chalé mesmo que fosse de tábua. A riqueza em Porto Alegre é muito dividida e os grandes industriais cresceram com o trabalho. A influência das colonizações estrangeiras contribuiu muito para a democratização, pois, ao iniciarem o trabalho da estaca zero, o braço do patrão suou a lado do braço do operário. Sempre defendi esse principio, pois todos tem direito e um dever que se crescer na medida do progresso”.
Esta energia vinda do poder originário sulista - com distinções entre cargos e funções apenas em termos de distribuição de responsabilidades e tarefas - permitiu a imensa imigração para as fronteiras do oeste brasileiro e se derramou em países limítrofes sobre culturas da matriz castelhana. Evidente, regado com um rio de dinheiro que dificilmente voltará para as suas origens sulinas. Contudo o sul-rio-grandense não ostenta ou faz cobranças mesquinhas. Saint-Hilaire já havia notado, em 1823[1], este aspecto de economia do Sul do Brasil:
«Na capitania de Minas (Gerais) os casamentos são raros, e as mulheres, reclusas no interior das casas não passam das primeiras escravas de seus maridos : na do Rio-Grande, as mulheres não se escondem, as uniões legítimas são a regra, e os costumes são mais puros.[...] Os mineiros gastam o seu dinheiro com ostentação: os homens do Rio Grande possuem, muitas vezes, fortuna considerável, mas, pelas suas casas e a maneira como vivem, parece que estão na indigência.A capitania de Minas (Gerais) se esgota : a do Rio Grande se enriquece. Os mineiros possuem uma coragem comum : os homens do Rio Grande distinguem-se por um valor brilhante, e, sob um chefe empreendedor, realizam conquistas onde não sejam contrariados nos seus gostos e seus hábitos”.
Neste quadro, traçado com maestria há quase dois séculos, em ano posterior da independência do Brasil, o que necessita ser salvo é esta circulação coerente do trabalho e do capital, sem permitir que seja entravado e engessado pela instalação de qualquer pedantocrocia. Risco latente em qualquer cultura humana. O colapso desta circulação pode paralisar um partido com seus CARGOS honoríficos, corromper uma universidade com os seus títulos de DOUTOR, as novas igrejas com os seus BISPOS, ou em outra qualquer estrutura na qual o poder é impedido de fluir é represado a favor de alguns e a desfavor de muitos.
Evidente que os autênticos DOUTORES, PRESIDENTES ou BISPOS - e tantos outros cargos honoríficos - conhecem melhor do que ninguém as funções e os dolorosos trabalhos e responsabilidades que deles decorrem.
[1] SAINT-HILAIRE, Auguste de- « Aperçu d’um Voyage dans l’interieur du Brásil : La Province Cisplatine et less Missions dites du Paragguay » – Paris : Belin, 1823, (pp.54-5 http://www.brasiliana.usp.br/bbd/advanced-search
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