quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

152 – LOGÍSTICA em ESTUDOS de ARTE: a pesquisa estética em Portugal


- ¿ POR QUE o BRASIL não RECEBEU a
ESTÉTICA RENASCENTISTA ITALIANA?

FRANCISCO de HOLANDA (1517-1584) e a EDUCAÇÃO ARTÍSTICA em PORTUGAL ao longo do RENASCIMENTO ITALIANO e a DETERMINAÇÃO da ESTÉTICA a SER IMPLANTADA na COLONIA BRASILEIRA


A formação e a pesquisa  estética sempre foram muito caros e de resultados incertos e/ou duvidosos.
O governo e a cultura lusitana preferiam importar tendências, estéticas, artistas, materiais e técnicas de arte de outros centros hegemônicos. Se na desalentava qualquer tendência individual para a PESQUISA ESTÁTICA AUTÔNOMA, se não proibia o uso da tinta à óleo, a pintura do retrato dos súditos e qualquer luxo ou exibição de criatividade

Numa visita, no ano de 1540, de Francisco de Holanda a Miguel Ângelo este estava bem consciente desta política lusitana devido a um ajudante que o mestre da Capela Sistina tinha a seu serviço. Fez de tudo pra que o jovem artista permanecesse na Itália. Mas Francisco preferiu a corte de Lisboa. Ali não teve a menor possibilidade de desenvolver o seu talento autônomo.
Porém registrou, por escrito e fez circular as observações pertinentes do mestre italiano e do Renascimento.
Se as rédeas para a pesquisa estética eram curtas em Lisboa, muito mais curtos e patrulhados eram na Colônia.
O Brasil na soberania teve parco e duvidosa ajuda governamental para a PESQUISA ESTÉTICA, como vimos no episódio de Joaquim LE BRETON e o CONDE da BARCA. Porém o hábito de três séculos de anestesia, inércia e de proibições continua a devastar mentes, braços e corações. .
Fig. 01 –  A construção monolítica do Estado Lusitano teve de ser cercar com todo aparato repressivo e onde não cabia um PROJETO CIVILIZATÓRIO COMPENSADOR desta VIOLÊNCIA ESTATAL EXPLÍCITA e SUBLIMINAR. A figura prostrada de Francisco de Holanda diante desta coluna monolítica (PELOURINHO) cercada por todo aparato repressivo é índice da condição do vassalo lusitano para quem a autonomia de um artista poderia se catastrófica.

O projeto socioeconômico e político para a colonização portuguesa na América, empreendida, após o período experimental das Capitanias Hereditárias, contornou, nas artes, completamente o gênio individual do homem do Renascimento Italiano. O projeto político colonial que D. João III confiou, em 1549, para Tomé de Souza, está completamente alinhado com a estética da Contrarreforma e reforçado pela Santa Inquisição. Este projeto colonial não deixava espaço para muitas veleidades estéticas, além daquelas da Propaganda da Fé e da estreita obediência à Coroa Portuguesa. A Propaganda Fé foi confiada à Companhia de Jesus. A Coroa portuguesa reservou-se os gastos suntuários que ficavam restritos aos templos e às irmandades rigidamente controladas pela estreita união entre o rei e o papa. Este projeto permitia exercer o direito da construção, da manutenção de casas senhoriais e de palácios, apenas em Lisboa, para o colono português que desejasse voltar para a “sua terrinha”. Contudo estes gastos suntuários dos súditos lusitanos, jamais chegaram aos pés da variedade e da liberdade de escolhas estéticas pessoais que os mecenas italianos possuíam. O retrato individual, em Portugal e suas colônias, era  privilégio dos reis, bispos e provedores das Santas Casas.
Fig. 02 –  O retrato do REI de Portugal DOM JOÃO III era uma das poucas concessões para a representação de um indivíduo singular. Na pintura da figura humana do Dom João III ainda é possível perceber uma representação do soberano anterior à mitificação dos reis monocráticos e taumaturgos.

O português Francisco de Holanda (1517-1584) viveu duas possíveis escolhas estéticas europeias que se ofereciam ao mundo na metade do segundo milênio. De um lado estava o paradigma da estética derivado da política das repúblicas italianas que privilegiavam o cidadão. Do lado oposta estava a estética derivada da Contra- Reforma que privilegiava o artistas como súdito do trono e da Igreja, unidos. Francisco de Holanda constitui um índice dessa escolha que ele teve de realizar entre os muros da Cidade Eterna[1]. Ele se encontrava na cidade de Roma, em 1540, muito jovem ainda. Ali reinava o papa Paulo III. A missão que o rei D. João III de Portugal, confiara a Francisco de Holanda na cidade dos Papas, não era muito evidente, por razões que se verá adiante. Oficialmente Francisco fora em missão de estudos de arte. Declarava, de uma forma explícita, que queria ser pintor. Na prática realizou um verdadeiro trabalho de repórter que lhe conferiu larga fama e abafou qualquer outra intenção velada ou um trabalho em arte individual. No retorno a Portugal carregava um bagagem de  entrevistas que registraram o pensamento vigente na Península Italiana. Recolhera esta bagagem em sucessivos debates nos quais ele registrou o pensamento vivo de Miguel Ângelo Buonarrotti (1475-1564) com a intervenção da Marquesa de Pescara-Vitoria Colona (1490-1547), protetora e mecenas do escultor, do arquiteto, do pintor e do humanista. Uma parte destas discussões foi publicada em 1548 sob o título “Diálogos de Roma”. Nesta obra existe o registro de três encontros com Miguel Ângelo. Num quarto capítulo (livro), faz uma revisão da pintura greco-romana na qual a ênfases é o valor na antiguidade da arte (mercado de arte). Estes textos eram acompanhados de desenhos, nos quais este espírito registrava as suas experiências visuais. Este material não foi publicado e andou sumido até o século XIX. Com pesquisas mais consistentes a obra de Holanda começou a reaparecer. A maior parte do seu trabalho está em arquivos de Madri.


[1] - Esta Cidade Eterna já havia infligido uma dura prova a Leonardo da Vinci, um dos artistas  símbolos da cidades repúblicas, fazendo-o esperar, durante dois longos anos, encomendas que nunca vieram.
https://www.academia.edu/20082907/_Francisco_de_Holanda_te%C3%B3rico_entre_o_Renascimento_e_o_Maneirismo_in_Hist%C3%B3ria_da_Arte_em_Portugal_vol._7_O_Maneirismo_sous_la_dir._de_V%C3%ADtor_Serr%C3%A3o_Lisbonne_Alfa_1986_pp._11-29
Fig. 03 –  Após o Renascimento a cidade de ROMA retomava a sua importância estratégica, politica e econômica.  Importância vivamente contestada pela REFORMA LUTERANA. Porém para Portugal era uma referência e juiz permanente nos seus conflitos de pretensões da Espanha. A estreita união de Lisboa e Roma não escondia aos portugueses os suas estratégias militares das quais Miguel Ângelo era mestre consumado e sempre consultado nas construções das fortalezas e cidadelas. A arquitetura destas se adaptava ao canhão e à pólvora.

No presente texto há interesse de vislumbrar, na figura de Francisco de Holanda, as bases de educação artística que ocorreu na origem da formação cultural brasileira como colônia portuguesa. Holanda educou-se antes de qualquer instituição destinada à formação artística formal[1]. O mundo cultural europeu foi sacudido por intensas transformações ao longo da juventude de Francisco de Holanda. As conseqüências das descobertas das Américas, as tentativas européias de se apropriar deste continente, a Reforma, a Contra-Reforma, o Concílio de Trento, o surgimento da Companhia de Jesus e a instalação oficial  da Inquisição em Portugal, representavam verdadeiros terremotos para a cultura e para as consciências dos europeus. Mas, conforme André Castel “é nos terremotos é que se conhece o interior do globo terrestre”. O solo da cultura lusa não respondeu da mesma forma como solo cultural italiano vinha se movendo há séculos com o seu Renascimento. Com o seu projeto, para ocupar largas terras em quatro continentes, Portugal necessitava urgentemente de projetos para estabelecer e dar uma forma contemporânea aos ´castrum´ da tradição das legiões romanas. Na ponta deste projeto o jovem Francisco de Holanda, em idade de serviço militar, entrou em ação. Foi desenhar fortalezas onde os romanos melhor as construíram e que haviam sido atualizadas pelas repúblicas italianas. Percorreu a ´via romana´ que leva de Évora até Roma. Na Cidade Eterna ele encontrou pessoalmente o gênio de Miguel Ângelo que, a partir de suas experiências florentinas e guerras papais, era mestre na arte da construção de fortalezas.


[1] Três anos após a visita de Holanda à Itália, os escultores de Roma fundaram um clube próprio, em 1543, graças a Miguel Ângelo . Em janeiro  de 1563 Vasari elaborou e fez aprovar em Florença os estatutos da Accademia del Disegno colocando-os artista  fora da guilda medieval. Estes artistas da Academia de Florença, em 1571, não são mais obrigados, por lei, a se inscrever nas corporações medievais. Em Bolonha os candidatos à artista  são reunidos, em 1582, na Academia dos Incamminati  dos  Carracci (Lodovico, Annibale e Agostino)
Fig. 04 –  Francisco de Holanda mitifica o retrato de MIGUEL ÂNGELO. Em diversas regiões da Itália era permitida  representação de um indivíduo singular. Esta tradição era ainda mais   forte e viva nos Países Baixos donde provinham os antepassados do artista lusitano. Porém realizou esse retrato do mestre italiano numa miniatura e longe da tradição da pintura holandesa[1].

Mas Francisco soube dissimular diplomaticamente, com um profundo saber humanista, a sua espionagem em favor das fortalezas lusas. Vestiu-se com o espirito do Renascimento. Feitos. Procurou, por todos os meios, construir o seu saber individual com apenas vinte anos feitos. Abriu o seu caminho entre os maiores intelectuais da sua época. Investiu toda a sua aparência no seu amor para com a pintura. É a própria Marquesa de Pescara que nos “Diálogos de Roma” quando ela testemunhou (1955, p.50) que:
“ vós, M. Francisco, o tendes feito tão bem por vossa namorada a Pintura, que se mestre Miguel (Angelo), não mostrar outro tamanho nível de amor por ela, porventura faremos com que ela faça dele divórcio e se vá convosco a Portugal”
Francisco educara-se em Portugal ainda no regime das guildas medievais na qual aprendera o ofício de iluminador do seu pai. Este pai viera dos Flandres (Holanda) e gozava alta relevância na corte lusitana, como iluminador. Assim o filho serviu príncipes o meio da nobreza e os seus interesses eram lhe familiares.


O TEXTO da OBRA de ARTE : MEMÓRIA e RETRATO:  FACE e INTERFACE do PRIMEIRO SUJEITO «MODERN0»

Fig. 05 –  O registro manuscrito de Francisco de Holanda sobre uma gravura de um livro de Vasari cujo desenho ele afirma ser criação do seu pai. A explosão de livros impressos nas normas de Gutenberg permitiu que os intelectuais, poetas, aventureiros e comerciantes conseguissem materializar o seu pensamento e fazê-lo circular nas estreitas camadas superiores alfabetizadas.

Contudo Francisco tinha um projeto pessoal bem definido. Sem amoldar à vida cortesã o seu  projeto, usufruía e cultivava todos os tipos de saberes ao seu alcance neste meio e nesta época. Nem o próprio evento da viagem o distraiu deste projeto. O seu guia na Itália foram os monumentos contemporâneos e os da passado.  Ele declarou que roubava um a um e os transportava para a sua terra em leves folhas de papel sobre os quais os desenhava. O seu amor à pintura e o desenho foi acompanhado por uma férrea vontade de nacionalidade e lealdade a quem lhe incumbira da missão. Contra todas as facilidades e recursos que a Itália podia oferecer ao pintor, ele registrou nos “Diálogos” (1955, p.66) “eu a El-Rei sirvo de Portugal e em Portugal nasci e espero morrer, e não na Itália”. Esta fidelidade e lealdade  è Portugal e ao seu rei, foi fatal para o seu amor maior. A sua pintura simplesmente não prosperou na corte da sua terra. Acabou os seus dias, em 1585, como outro funcionário público qualquer enredado no serviço do desenho de fortes para as conquistas territoriais dos seus patrícios.
Não adiantou diagnosticar o problema “ de uma cousa é infamada Espanha e Portugal, e esta é que em Espanha, nem Portugal, não conhecem a pintura, nem fazem boa pintura, nem tem seu honor a pintura” como escreveu (1955, p.03)  nas primeiras páginas dos ”Diálogos”:
Francisco de Holanda colocou na capa do seu livro a figura de um “louva-deus” representado emergindo entre duas colunas, faz lembrar a heráldica maçônica É o resultado e índice de uma iconografia exprimida entre cerceamento da criatividade individual, do registro objetivo da natureza e da pesquisa estética.

A verdade é que nem a sociedade portuguesa e nem o projeto cultural, que deveria ser conduzido pelo Estado lusitano, estavam necessitando da pintura. Se na sociedade e na corte reinava esta falta de um projeto civilizatório favorável à arte, muito menos podia-se esperar da colônia brasileira inteiramente presa nos laços jurídicos do projeto colonial. O homem do renascimento, mesmo aquele que contato direto com os cidadãos das repúblicas italianas, foi forçado, para o bem do reino, a mergulhar num inconsciente coletivo avassalador da mística religiosa alienante do mundo real e da prisão da mediocridade cultivada[1]. O projeto individual, do homem como medida de todas as coisas, era perigoso e suspeito para os ouvidas e as mãos armadas da Santa Inquisição. A racionalidade administrativa do legalismo, originário da recém criada Universidade de Coimbra, promoviam o projeto da conquista da terra e a conversão dos conquistados à fé,  para garantir esta posse para a Coroa e a Igreja. A pessoa do artista  criador, especulador e autônomo era um perigo potencial na medida em que poderia pleitear o diferente e o divergente deste projeto da Contrarreforma. De forma particular este perigo redobrava na pessoa de um discípulo de um Miguel Ângelo que causara tantos problemas para príncipes, reis e papas que o haviam financiado.


[1] - Na França esta onda de alienação foi denunciada, nesta época,  pelo jovem La Boetie no seu texto “Da  Servidão Voluntária”.  BOÉTIE, Etienne 1a.  Discurso da Servidão Voluntária.  Tradução de Laymert G. dos Santos.  Comentários de Claude Lefort e Marilena   Chauí.  São Paulo : Brasiliense, 1982. 239p.

Fig. 07 –  O imenso império lusitano é sugerido e representa por Francisco de Holanda na forma de esfera. Porém esta esfera terrestre ainda era dominada e orientada pelo pensamento antropomorfo. A evidência da Terra, na forma de um Globo é cada vez mais aceita. Porém o Geocentrismo impunha ainda uma mitologia e uma sequência de imagens que tornaram a tarefa de desmontá-la quase impossível, na geração seguinte, como Galileu Galilei (1564-1642)

O projeto da Contrarreforma, a Companhia de Jesus, com o rígido catecismo da Propaganda Fé, ameaçando os sentidos humanos com as chamas a Santa Inquisição pactuada entre Igreja e a Coroa portuguesa. Neste meio político era impensável, ao homem luso contemporâneo ao renascimento, cultivar uma sadia mente individual e em cidadãos manter projetos pessoais lúcidos. Do outro lado das fronteiras, que congregavam as mentalidades atingidas pelo “Livre Arbítrio” da Reforma, o filósofo Espinosa, filho de portugueses migrados em tempo, resumiu a questão do equilíbrio entre o liberdade do cidadão, face à segurança do Estado,  ao escrever (s´d., p.203) que “num Estado livre, as ciências e as artes serão perfeitamente cultivadas, porque permitir-se-á a qualquer cidadão ensinar em público, por sua conta e risco”. Em Portugal rumava-se no exato caminho contrário. A liberdade de uma consciência de um artista, deveria ceder lugar à lei, que precedia os fatos. Esta lei era modelada, de forma unívoca, e a sua aplicação era determinada pelo Estado. Em face de tudo isto, Luís de Camões  teve de submeter “Os Lusíadas” à Inquisição, para ter o direito de  publicar, em 1572,  a sua obra em Portugal.
Fig. 08 –  A desconfiança de a CIÊNCIA fugir do controle estatal e eclesiástico é representa por Francisco de Holanda para desqualificá-la com bruxa medieval e destinada a  afastar  o  indivíduo singular de sua prática e acolhimento. Esta imagem contrasta vivamente com as Sibilas que Miguel Ângelo pintou no teto da Capela Sistina

A aprendizagem individual da arte.
Francisco de Holanda criou para si mesmo um programa de educação e de aprendizagem, apesar de todas estas condicionantes, como homem influenciado de longe, pelo Renascimento. Este programa permitiu que, ao menos, algumas parcelas de sua obra sobrevivessem a tempos dão adversos. Seguia assim o programa de  “nunca fazer algo que um outro seria capaz de fazer”  formulado por  Leonardo da Vinci (1452-1519). Contudo as grandes distâncias geográficas e políticas e a necessidade da racionalização da produção e da sua estandardização para uma população cada vez mais numerosa, colocavam, em toda parte, a necessidade e os pilares da industrialização. O homem, como a medida de todas as coisas,  e a terra, como centro do universo, aos poucos estavam sendo deslocados por fenômenos, que ainda não haviam aflorado à consciência individual e muito menos emergido para a consciência coletiva, para receber um nome ou uma designação universal.
Nas artes a formação lenta, individual e de resultados improváveis estava dando lugar para a formação rápida, coletiva e de resultados rigidamente controlados no tempo. Esta a tarefa que se propunham as diversas academias de arte que se estavam organizando na entrada do Maneirismo europeu.
As academias de arte racionalizavam esta formação e impunham programas que, aos poucos, se constituirão nas bases de currículos coletivos, substituindo o grande esforço da formação individual do artista. Ainda, que em todos os tempos, o artista tenha resistido a esta racionalização, na verdade a educação artística também mergulhou na linha de montagem da produção da escola racionalizada. O campos das artes, apesar disto, resistiu até o século XX na sua inscrição institucional na universidade e da qual o Brasil foi um dos pioneiros[1]. Com a entrada da era da Informática já existem acenos institucionais para que o artista retorne ao projeto da construção individual do seu currículo, pensamento próprio e a formação continuada antes, durante e após a passagem do artista pela instituição de arte.


[1] - Ver os decretos-lei nº 19.851 e 19.852,  de 11 de abril de 1931,  do Ministério de Educação e Saúde Pública do Brasil, que instituem a Universidade Brasileira e o lugar que as artes ocupam neste texto jurídico.
Fig. 09 –  Os quatro elementos da Natureza concorrem para um desígnio superior antropomorfo . A clássica explicação bíblica do HOMEM formado do BARRO com o concurso da TERRA, da ÁGUA, do FOGO e do AR era um barreira para qualquer pesquisa discrepante e reforçada pelas barreiras legais das fogueiras da Santa Inquisição. A Igreja condenava e o Estado executava

Ao retornar ao exame da formação de Francisco de Holanda, e o fracasso ulterior dos seus esforços individuais, é possível tirar lições para ler o período inicial da educação artística colonial brasileira. Para seguir a gênese e o desenvolvimento da trilha deixada por Francisco de Holanda há necessidade de uma soberana legitimação interior e ao nível das ideias. Neste universo interior de Francisco de Holanda, iluminado pelas luzes das ideias, não existe registro de mágoas pessoais, apesar de toda a consciência da situação aversiva à arte em Portugal. Esta sublimação foi sustentada pelo idealismo neoplatônico a partir das concepções encarnadas na arte de Miguel Ângelo tão bem descrito por Panofsky na sua obra “Idea”[1]. A sincronia de Holanda com o seu tempo, que associava intimamente arte com o ideal[2], manifesta-se especialmente com a intenção superior com que Francisco Holanda concebia o mundo do desenho.
O próprio Miguel Ângelo soube da forma como Holanda se apropriara da natureza de uma pintura sagrada, existente na Basílica de São João e elogiou (in Holanda, 1955, p.77) a formação do artista por meio do desenho “grande muito grande, é a força do desenho, pode Messer Francisco Holanda pintar, se ele quiser, tudo o que ele sabe desenhar
O desenho possui aqui  o sentido do `designio´ ou da ideia. Adiante, no mesmo texto (in Holanda, 1955, p. 77), Miguel Ângelo sentenciou “somente o não saber é defeito” Este saber deve ser tão natural a ponto de formar uma segunda natureza no artista:
 “o primor cuido que tereis por sumo, este é que o por que se mais há de trabalhar e suar nas obras da pintura é com grande soma de trabalho e de estudo, fazer a coisa de maneira que pareça, depois de mui trabalhada, que foi feita quase depressa e quase sem nenhum trabalho, e muito levemente, nãos sendo assim. E este é mui excelente aviso e primor”
Miguel Ângelo, in Holanda, 1955, p. 82.


[1] PANOFSKY, Erwin . Idea: contribuição à História do conceito da antiga teoria da arte. São Paulo : Martins Fontes 1994, 259 p
[2]Segundo Pevsner (1982, p. 53) os artistas da época de Miguel Ângelo qualificavam o ‘disegno’ como ‘ún signo de dio in noi’ Desenho ou ‘disegno’, constituía a base dos mais diversos ofícios e que vinculava as artes plásticas ao mundo das idéias através do ato da designação mental.  Pevsner resumiu a importância que a  Academia de Vasari dava Desenho, ao registrar que era a disciplina que reunia os mais diversos profissionais, trabalhando em materiais diferentes e que procuravam infundir nesses materiais os conceitos e idéias que os animavam. Assim Pevsner registra (1982, p 45) que  “na «Accademia del Disegno»  os seus membros trabalhavam materiais muito diversificados, e portanto pertenciam a diferentes grêmios, mas o que  o que era importante para todos era o «disegno» e que acima de qualquer outra coisa era «esprezione e dichiarazione del concetto che sia nell’animo».

Fig. 10 –  Francisco de Holanda representa o mundo empírico povoado de forças que convergem e são comandadas pela Trindade. As metáforas iconográficas mantinham o súdito longe da investigação, da criação individual e da autonomia, pois recebia pronta uma explicação visual inclusive para analfabetos. Havia um abismo cm  as obras propostas pelo mestre da Capela Sistina e do Juízo Final.

Esta `grande soma de trabalho e de estudo´ era inteiramente contrária à cultura portuguesa, especialmente se este trabalho significasse usar as mãos. O trabalho manual, na época de Francisco de Holanda, era infamante em Portugal e no Brasil,  conforme texto citado por Lourenço Filho (1940, p. 21) “um cronista, que escrevia em Lisboa, por meados do século XVI dizia ´aqui somos todos nobres e não levamos nada nas mãos pelas ruas. O trabalho fez-se para os artesãos ou para os escravos´”
A cultura luso-brasileira, contrária ao trabalho braçal, era reforçada por uma política oficial que apenas privilegiava a atividade especulativa. O estado português reforçava de forma institucional a educação do advogado, do teólogo e do militar e constituem os grandes investimentos deste Estado, que reproduz e estimula os interesses da sociedade que sustenta este Estado. A Universidade de Lisboa (1400) ou de Coimbra (1537) a colhia a elite dirigente e os seus filhos. A própria instituição encarregava-se de filtrar este saber para os seus interesses, apesar de professores convidados de outros países. Assim quando Dom João II fundou, em 1542, o Colégio das Artes, poderia supor-se a criação de um canal institucional para o desenvolvimento das artes. Mas este colégio não tinha nada a ver com as artes na sua concepção atual[1]. Frustrava-se novamente o sonho de Francisco de Holanda repassar as suas ideias por meios sensoriais orientados pelo `desígnio´.


[1] - Nos manuais jesuíticos, a concepção de arte, era medieval e se referia, de forma particular, a “arte da retórica” indispensável aos advogados, eclesiásticos e militares
Fig. 11 –  O “designio” na concepção de Miguel Ângelo corria facilmente o perigo em Portugal de se confundir o “desígnio comum de todos mortais”. Este implacável triunfo da ETERNIDADE tira qualquer sentido da criação, ao trabalho e intervenção humana na Natureza.

O luxo e identidade individual do retrato eram proibidos na cultura lusa e ainda mais numa das suas colônias. Como Francisco de Holanda era miniaturista, esta proibição retirava-lhe esta possibilidade de fazer retratos, como aquele que ele realizou do próprio Miguel Ângelo (Fig.04).
A pintura mural ou a escultura em prédios particulares era outro tabu. O português podia construir na metrópole obras arquitetônicas com maior ostentação, mais cômodas e mais amplas, mas jamais nas terras consideradas colônias. A exceção eram os prédios das igrejas e as ornamentações estritamente reguladas pelo Estado e pela Igreja. Esta rígida estética oficial colonialista desanimava e jogava na heteronomia qualquer artistas visual mais criativo.
Francisco de Holanda era portador de uma tradição familiar de trabalho braçal que herdara dos seus antepassados oriundos da região dos Flandres. Apesar de seu lugar de nascimento ser Lisboa e dos seus sinceros protestos de ser português, o seu sangue flamengo o impelia ao trabalho braçal. Miguel Ângelo criticava fortemente o trabalho braçal detalhista da pintura dos Países Baixos, carregada de detalhes e de verdadeiras proezas visuais.
“tudo isto, ainda que pareça bem (pintura flamenga) a alguns olhos, na verdade é feito sem razão nem arte, sem simetria nem proporção, sem advertência do escolher nem despejo, e finalmente sem nenhuma substância nem nervo”      Miguel Ângelo, in Holanda, 1955, p. 19..

Francisco de Holanda não teve condições para realizar o salto de qualidade para fora do paradigma que herdara dos seus antepassados. Permaneceu preso a sua cultura pessoal, que cultivava a miniatura, ao estilo do retrato que se conhece de Miguel Ângelo, e que se encontra nas “Antigualhas” guardadas na Biblioteca do Escorial. Contudo ele não deixou de registrar o que mestre renascentista italiano falava da pintura holandesa com leves atenuantes, pois “em outra parte se pinta pior que em Flandres. Nem digo tanto mal da flamenga pintura porque seja toda má, mas porque quer fazer tanta coisa bem que não faz nenhuma bem” dizia Miguel Ângelo (in Holanda, 1955, p. 19.). A conhecida ferocidade das opiniões do mestre se deteve diante do rapaz  que vinha aprender pintura em Roma. Esta atenuante do velho mestre talvez fosse pela presença física e a simpatia que nutria pelo jovem. Francisco também não se manifestou contrário ao pensamento do mestre florentino.
Fig. 12 –  O anjo de luz é uma das metáforas do mensageiro de algo distante  e inatingível criadas por Francisco de Holanda. A infinita distância que se foi cavando ao longo do período colonial brasileiro entre o súdito e o Estado Lusitano era mediada por poucos e raros e selecionados indivíduos mitificados. Não era permitido ao artista desvelar esta mitificação, abstração e distância intransponível Antes ao contrário cabia reforçar estes mitos, abismos e abstrações.

A cultura lusa, de não fazer nada com as mãos, aliada a tradição flamenga do primoroso trabalho manual do detalhe, forjou mais um aplicado funcionário público do Estado português. Funcionário público que se especializou na arte de criar detalhadas instruções, gráficos e plantas, para serem executados por escravos e artesãos.

CONCLUSÃO
Apesar de Francisco de Holanda constituir-se num caso isolado, e muitas vezes ignorado pelos historiadores, ele representa um índice e uma amostra importante da cultura portuguesa da época. Cultura lusa ainda com alguma hegemonia significativa na época de sua vida, no plano mundial, e que impôs um paradigma colonial que teve séculos de profundas consequências diretas para a colônia brasileira.
 Francisco de Holanda, com antepassados flamengos, filhou-se à inteligência portuguesa. Esta inteligência buscou contatos com Miguel Ângelo, um dos maiores expoentes vivos do apogeu da cultura do renascimento. Italiano.
Nos textos “Diálogos de Roma” adivinham-se estas três culturas. Eles aproximam-se e constituem uma radiografia da cultura e dos valores artísticos vigentes na época na Europa e em Portugal, onde houve escolhas cruciais para cultura brasileira. Seguindo o conselho de Ricœr há necessidade de retornar para meio cultural onde os agentes ainda possuem dúvidas em relação ao futuro das suas escolhas.
Fig. 13 –  A antiguidade clássica romana e grega estava sendo desvelada em raras amostras como a “Domus Áurea” em pleno centro de Roma. “A esta tendência estética, anterior às pesquisas arqueológicas científicas, denominou-se de ‘Grutesco”[1] e que Francisco de Holanda reinterpretou nesta imagem ao seu modo e com seus recursos.

Nesta escolha fica evidente que a matriz da cultura brasileira ficava numa heteronomia muito mais profunda do que as demais futuras colônias anglo-saxônicas. Esta heteronomia fica mais evidente quando acompanharmos a intencionalidade e os esforços portugueses para implantar no Brasil, a partir de 1549, um novo projeto colonial. Tomé de Souza trazia determinações claras e unívocas, referendadas por Dom João III, para a colônia brasileira, quando ele. se  fixou- em Salvador
Havia sido o mesmo Dom João III que autorizara a ida de Francisco de Holanda para Roma, colocar-se a par do movimento cultural originário das repúblicas  italianas. O rei português  contudo, nas suas dúvidas, acreditou nos jesuítas, portadores da Contrarreforma.
Fig. 14 –  A esferas celestes dominadas por forças e energias humanas evidenciam o drama que se seguiu o tempo em que descobria que este SER humano não era a medida e a razão da existência destas forças e energias. A partir deste ponto o Maneirismo reage e busca encontrar outras energias e forças.

As reportagens, que o jovem Francisco havia realizado com um velho mestre renascentista italiano, foram relegadas, durante séculos. Convinha esconder estas reportagens, e, se possível, apagar da consciência dos súditos, vassalos, e, muito mais, para os escravos, que não podiam deliberar e decidir. Ao ressurgiram para a História, reapareceram como testemunhas de uma escolha crucial “equivocada”. Documentos que são testemunhas silenciosas de gerações de súditos e de potenciais artistas que não tiveram a sorte de Francisco de Holanda conhecer e interagir com a mentalidade de um artista crucial da arte mundial, com seus hábitos de autonomia e criação artística individual conquistada a duras penas. Se as condições de um artista na corte de Lisboa eram estas, é fácil imaginar o que aconteceu numa colônia fechada e da qual não temos documentos. O mais impressionante e aterrador é contemplar os hábitos de servidão e de aniquilamento alimentados e cultivados ao longo de três séculos no Brasil. A entropia na inteligência, na vontade e na inteligência do brasileiro estão vivos e ativos nos seus costumes de heteronomia de expressiva massa populacional atual.
A estética do renascimento italiano ficava no espelho retrovisor da carruagem do rei e de seus súditos. O caminho era irreversível em direção à Contrarreforma.
Fig. 15 –  A assinatura disfarçado de Francisco de Holanda é um dos últimos lampejos da individualidade do artista na pista do Renascimento Italiano. Com o projeto da CNTRARREFORMA e da PROPAGANDA da FÈ desaparece a assinatura do artista na cultura luso brasileira. Esta assinatura e o nome do artista só retornarão ao Brasil com a entrada da Missão Artística Francesa, em 1816.

FONTES BIBLIOGRÁFICAS
BOÉTIE, Etienne La.  Discurso da Servidão VoluntáriaTradução de Laymert G. dos Santos.  Comentários de Claude Lefort e Marilena Chauí.  São Paulo : Brasiliense, 1982. 239p.
DESWARTE-ROSA, Sylvier. «Idea et le temple de la Peinture: Michel-angelo Buonarrotti et Francisco de Holanda» in Revue de l´ART. Paris, nº 92, 2º trimestre, pp. 20-42

HOLANDA, Francisco de (1517-1584) Diálogos de Roma: da pintura antiga. Prefácio de Manuel Mendes. Lisboa : Livraria Sá da Costa, 1955, 158 p.

LOURENÇO FILHO. Tendências da Educação Brasileira. São Paulo : melhoramentos, 1940.
MATTOS, Luis Alves. Primórdios da Educação no Brasil ; período heróico (1549-1570) Rio de Janeiro : aurora, 1958, 306 p.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3a. ed.  São Paulo : Perspectiva. 439p.
--------Idea: contribuição à História do conceito da antiga teoria da arte. São Paulo : Martins Fontes 1994, 259 p

PEVSNER, Nikolaus. Las academias de arte: pasado y presente. Madrid : Cátedra.       1982. 252p.

SPINOZA, Benedictus. Tratado político. Rio de Janeiro : edições de Ouro, s/d, 235 p.

FONTES NUMÉRICAS DIGITAIS
GRUTESCO

FRANCISCO de HOLANDA (1517-1585)
AUTO RETRATO
DE ÆTATIBUS MUNDI IMAGINES
Desenhos
ASSINATURA
O PAI de FRANCISCO
LIVRO ao PAPA

SYLVIE DESWARTES-ROSA  e FRANCISCO de HOLANDA
Revue de l´ART. Paris, nº 92, 2º trimestre, pp. 20-42
ROMA

O MAIS INUTIL dos TEMERÁRIOS
1ª versão: Porto Alegre   –RS – Setembro de 1992
2ª versão: Porto Alegre –RS          – Maio de 2005
3ª versão Porto Alegre – RS     Dezembro de 2014
4ª versão Porto Alegre – RS       Fevereiro de 2016
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