Antes de ler este artigo, convém consultar:
http://profciriosimon.blogspot.com/2010/10/isto-nao-e-arte-01.html
03 - ESCRAVO NÃO FAZ ARTE
Fig. 01 – O Negrinho do Pastoreio colocado abaixo das bestas
O DIA da CONSCIÊNCIA NEGRA, instituído recentemente, e comemorado no dia 20 de novembro de cada ano, trará certamente o tema da ESCRAVIDÂO como central e o caminho de uma possível reparação de inverdades e injustiças clamorosas.
A cultura sul-rio-grandense oferece material, variado e recente, para aprofundar este tema e exemplificar a servidão e formas para reparar.
Fig. 02 – O Negrinho do Pastoreio sem pai e ai conhecidos e sem proteção confundido com as bestas.
Foi no caminho da arte que este escravo negro encontrou os seus pontos de resistência, de busca de identidade e de possibilidades para projetar a sua própria cultura. Se ele tivesse rendido a sua inteligência e sua vontade - neste campo de forças da arte - seria completa e absoluta a sua reificação. Restou o filão de sua arte para buscar e afirmar o que existe de mais ancestral e comum na civilização humana. Depois das custosas busca da arqueologia das origens da consciência do europeu, chegou a hora de fazer a arqueologia da consciência africana e que foi introduzido no Brasil na forma de escravo.
Fig. 03 – Crianças vendendo flores em Porto Alegre como “escravos de ganho” .
Contudo, antes é necessário vencer o tabu de que ESCRAVO NÂO FAZ ARTE. Este era o argumento subliminar constante dos escravocratas. Por meio dele desqualificavam integralmente a vontade e o sentimento de quem ele queria ao seu serviço. Desejavam usufruir todo o seu trabalho, de corpo e alma, do berço até cova rasa. Negavam a este “seu pertence”, a origem, a identidade ou nome de família ou clã .
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smc/default.php?reg=4&p_secao=19
Fig. 04 –Solar Lopo Gonçalves – construído entre 1845-1855, como uma CASA GRANDE (em cima) e a SENZALA (porão) em PORTO ALGRE.
Para legitimar este “seu pertence”, proibiam-lhe a língua africana. Despojavam-no de, de qualquer posse ou signo de identidade. Os grupos étnicos era dispersos em locais distantes de outros dos indivíduos das tribos africanas da sua origem. A sua reprodução era efetuada fora da família e clã ao modelo da reprodução de um plantel animal e com a intervenção do elemento branco. Suas crenças era desprezadas, perseguidas e violadas pela conversão forçada e a sua integração em irmandades artificiais e controladas pelo dominador.
www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/14870/000655853.pdf?...1 http://maracatureidocongo.blogspot.com/
Fig. 05 – A Irmandade do Rosário recebendo donativos – Jean Baptiste Debret.
O escravocrata propunha-se atingir a heteronomia total da vontade e da CONSCIÊNCIA NEGRA deste “seu pertence”. Aristóteles, ao descrever a escravidão e os seus efeitos, percebeu, no seu conjunto, de que o escravo não é humano, pois não delibera e não decide. Os seu argumento e de que “um ser que, por natureza, não pertence a si mesmo, mas a outro, mesmo sendo homem, este é, por natureza, um escravo” (in Tosi, 2003, p.79) além de reificação do corpo, remete o escravo ao mundo de possíveis negócios patrimoniais como um entre outros “pertences”.
Fig. 06 – Fundos da Igreja do Rosário – Porto Alegre
Invertendo esta afirmação é possível dizer que quem não delibera e não decide não é gente. Se isto de fato vier a ocorrer não há arte.
As formas culturais dos quais o dominador se valia para produzir este heteronomia da vontade do seu escravo, foram descritos por Arsène Isabelle , em 1834, ao visitar a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Narra (2010, p.247) que:
“sabeis como esses senhores em sua superioridade, tratam os escravos? Como nós tratamos os cães. Começam chamá-los com um assovio e, se não atendem imediatamente, recebe dois ou tre tabefes[...] Se tentam explicar, são amarrados ao primeiro poste, e então, o senhor ou senhora vêm, com grande alegria, ver flagelar até que o sangue brote, aqueles que na mais das vezes, só cometeram a falta bem inocente de não terem podido adivinhar os caprichos de seus senhores e donos. [ ...]Pois bem, vi estas coisas no ano da graça de mil oitocentos e trinta e quatro! E vi mais ainda. Há senhores bastante bárbaros, principalmente na campanha,, que mandam fazer incisões nas faces, nas costas, na nádegas, nas coxas para dos seus escravos, para meter pimenta dentro delas.[...] Com sal e pimenta, como se trata a chaga de um animal que se quer preservar dos vermes”.
Fig. 07 – O escravo marcado
Estes senhores de escravos, de 1834, seguiam ao pé da letra o que Aristóteles afirmou que “escravos e animais domésticos prestam ajuda com seu corpo às necessidades da vida” (in Tosi, 2003, p85)
O esforço para sair desta heteronomia - vista com algo natural, e afirmar os paradigmas coerentes com estas circunstâncias - criam, na criatura humana, submetida a esta condição de escravo, um halo e uma necessidade de mergulhar nos mistérios no seu ente reificado e violentado.
Contudo o próprio Aristóteles reconhecia que “é somente em virtude da lei (nomos) que alguém é escravo e o outro livre” (in Tosi, 2003, p.74). Esta distinção do filósofo não impediu a formação de hábitos, tanto no dominador como no escravo, de uma cultura, na qual “o livre legal”, permaneceu na heteronomia daquele que ele considerava seu “escravo legal ou natural” na satisfação, das suas necessidades vitais. O escravo, com o corpo reificado, despojado de sua autonomia de vontade e com os sentimentos violentados, estava pronto a rechaçar sempre qualquer culpa de suas situação, legal e natural, retirando qualquer sanção moral dos seus atos.
LAGEMANN, Eugênio et LICHT, Flávia Boni (rg.s) PALÁCIO PIRATINI. Porto Alegre : IEL, 2010, p.95
Fig. 08 – O Negrinho do Pastoreio na Glória
“Porém logo, de. perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo...E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!” Lendas do Sul - Simões Lopes Neto.
O esforço, para sair da heteronomia da escravidão, encontra o seu maior obstáculos na escravidão voluntária, no discurso do coitadinho e no eterno discurso de plantão da “culpa é do OUTRO”. A escravidão voluntária, sabe que a “sanção moral da vontade é a sua autonomia” segundo Kant. Mas, como esta é muito difícil, inacessível mesmo em circunstâncias como a escravidão do corpo de alma.
Numa civilização, como a atual - subjugada e atrelada aos apelos explícitos e subliminares do marketing e da propaganda - a reprodução autônoma do seu ente, da vontade e dos sentimentos autênticos, encontram permanentes motivos para jogar-se nos braços da heteronomia da sua vontade e escravidão voluntária.
A questão torna-se crítica ao considerar que:
“a arte não pode ter sua missão na cultura e formação, mas seu fim deve ser alguém mais elevado que sobre-passe a humanidade. Com isso deve satisfazer-se o artista. É o único inútil, no sentido mais temerário” Nittzsche 2000, p.134[1]
Não deve surpreender ninguém a emergência de estéticas e as formas de expressão novas, desconhecidas e criativas,. Elas serão possíveis depois de vencida a escravidão natural, legal e voluntária. A afirmação de novos paradigmas coerentes com “alguém mais elevado que sobre-passe a humanidade”.
[1] NIETZSCHE, Frederico Guillermo (1844-1900) Sobre el porvenir de nuestras escuelas. Barcelona: Tusquets, 2000. 179.
http://artecarlao.blogspot.com/
Fig. 09 - CARLOS ALBERTO de OLIVEIRA – o Carlão – O FUTEBOL -
Cabe ao observador – diante de alguÉm que não segue a tradição estética, e as suas leis, geradas ao longo desta cultura escravagista legal e natural - uma ruptura epistêmica e estética com os seus próprios paradigmas, para poder contemplar e usufruir destes novos mundos emergentes.
Torna-se odiosa qualquer comparação entre estéticas e obras. Exige-se o conhecimento das circunstâncias e as origens destas obras de arte para realizar a ruptura epistêmica e estética com os seus próprios saberes. A vontade, iluminada por estas distinções pode realizar opções nos espaços estéticos conquistados por aqueles que estiveram na heteronomia da escravidão natural, legal e voluntária. Tanto o artista como o seu observador - com estas distinções - possuem o direito de escolhas criativas na fértil reprodução de uma cultura própria e autônoma.
Com estes cuidados é possível perceber a imensa diversidade estética e a força da sua criatividade em algumas amostras que se seguem:
PINTORES NEGROS sul-rio-grandenses e alguns brasileiros
MARIA LIDIA MAGLIANI
http://www.guion.com.br/arte/magliani.htm - http://www.margs.rs.gov.br/ndpa_sele_maria.php
http://www6.ufrgs.br/acervoartes/modules/wiwimod/index.php?page=MAGLIANI
WILSON TIBÉRIO
http://www6.ufrgs.br/acervoartes/modules/xcgal/displayimage.php?pid=459&album=2&pos=3
http://paulistacult.wordpress.com/
CARLOS ALBERTO de OLIVEIRA – o Carlão
http://artecarlao.blogspot.com/
O poeta OLIVEIRA SILVEIRA
http://www.negraldeia.blogspot.com/
www.oliveirasilveira.blogspot.com
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
BOÉTIE, Etienne La (1530-1563). Discurso da Servidão Voluntária (1549). Tradução de Laymert G. dos Santos. Comentários de Claude Lefort e Marilena Chauí. São Paulo : Brasiliense, 1982. 239p.
BOURDIEU, Pierre (1930–2002) & PASSERON, Jean Claude. A Reprodução. Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1982. p. 238
KANT, Emmanuel (1742-1804). Crítica da razão prática. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. 255p.
LAGEMANN, Eugênio et LICHT, Flávia Boni (rg.s) PALÁCIO PIRATINI. (3ª ed.) Porto Alegre : IEL, 2010, 144p. Il. 22 x 25 cm. CDU: 725.13(816.51) - ISBN 978-85-7063-339-2
MARTINS, Liana Bach – A geografia histórica de Porto Alegre através de três olhares (1800-1850)RS – Porto Alegre : UFRS – Instituto de Geociências 2008, 229 fls
www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/14870/000655853.pdf?...1
NIETZSCHE, Frederico Guillermo (1844-1900) Sobre el porvenir de nuestras escuelas. Barcelona: Tusquets, 2000. 179.
TOSI. Giiusepe. Aristóteles e a escravidão natural Campinas :Boletim da CPA nº 15, jan/ajun 2003 pp 71-100. . ARISTÓTELES EA ESCRAVIDÃO NATURAL Formato do arquivo: PDF/Adobe Acrobat –
Visualização rápida www.puc-rio.br/parcerias/sbp/pdf/11-giuseppe.pdf -
Este blog esteve mais lento na postagem de matérias inéditas, devido à contabilidade e organização do seu arquivo no acervo disponível em
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espera-se retomar o ritmo normal.
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