quarta-feira, 30 de novembro de 2011

ISTO é ARTE - 017

A LIBERDADE ASSUSTA e DESESTABILIZA -
A ESCRAVIDÃO CONFORTA e é SEGURA.

Fig. 01 – SALA dos MISTÉRIOS - pintura mural da Roma Antiga. As cerimônias - relacionadas à iniciação e ao culto dos deuses da fertilidade - selecionavam e legitimavam a procriação de filhos aceitos  na sociedade romana como os seus legítimos herdeiros do poder, da economia e da política. . A religião do Estado zelava e controlava o sistema por meio de cerimônias que reforçavam e legitimavam este contingente humano que constituía o núcleo crítico da nação romana.

A Arte em si mesma não infunde medo algum, parece inofensiva e até divertida. Contudo as condições que a Arte exige, para a sua prática, assustam desde a sua origem e continuará a infundir temores, a desestabilizar e a provocar racionalizações de toda ordem.

As próprias mães, de todos os lugares e tempos, procuram afastar, de sua prole, a sombra de qualquer Arte, e advertem:

- Não faça artes,  meu filho..

A Arte sempre sofreu, nas suas praticas, severas restrições, e sempre as sofrerá. Isto apesar de todos os progressos científicos, filosóficos ou morais de uma civilização adiantada e na qual Arte pede voz e vez. Existem e existiram civilizações inteiras nas quais é raro encontrar aqueles que enfrentaram o tabu apontado pelas zelosas mães, em todos os tempos e lugares. Assim na antiga Roma, apesar de todo o seu esplendor e força, é muito difícil distinguir romanos aos quais se poderiam entregar o título de artista na concepção que temos hoje desta figura.

A questão que emperra a criação artística não reside no patrimônio material ou imaterial. Nem é ali que se camuflam os gatilhos da armadilha da escravidão voluntária ou compulsória. O problema da Arte reside na LIBERDADE que ela supõe para se constituir, para circular e para ser recebida como uma força de procriação mental e física com suas próprias leis e exigências.

Fig. 02 – SENTIDO  ETIMOLÒGICO da PALAVRA LIBERDADE em FERRATER MORA, José – Dicionário de Filosofia – São Paulo : Loyola 2000-2011 2vol 
Veja  a evolução termo LIBER na cultura romana em http://en.wikipedia.org/wiki/Liber
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O termo LIBERDADE, criado exatamente pelos romanos, possui o dom de lançar luzes e a mesmo tempo escamotear os mecanismos do poder e de tudo aquilo que aciona os controles da procriação, da circulação e da recepção da Arte. Os patrícios romanos conferiam a LIBRÉ aos indivíduos que atingiam a fase fértil da vida. O sistema, reforçado e legitimado pela religião de Estado, zelava e controlava a mente e o corpo deste contingente humano que constituiu o núcleo crítico da nação romana. Quando as pessoas, deste núcleo, atingiam o liber eram aceitos, legal e ritualmente, como aptas para procriar e acrescentar novos patrícios à nação romana. Os outros, o restante da população, era reproduzido ao modelo do escravo que não dispunha do seu corpo e não estava em condições deliberar e decidir e legalmente gerar patrício romanos. Esta escravidão legal fazia com que Aristóteles colocava o escravo na categoria dos não seres humanos.

Fig. 03 – CASA GRANDE e SENZALA em PORTO ALEGRE. Este prédio é um índice  cujo mérito atual é  preservar uma amostra física desta da iniquidade legal, social, cultural e econômica da escravidão legal no Rio Grande do Sul. A parte superior da casa repousa sobre o porão transformado em senzala  com parca ventilação, conforto para animais e cujo sentido era dar abrigo e segurança ao plantel escravo do próspero e bem relacionado comerciante Lopo da Costa. Preservado pela Prefeitura de Porto Alegre que instalou e mantém nele o Museu José Joaquim Felizardo.


Evidente que este escravo era tratado de tal forma que o seu dono o apresentasse como um plantel e um patrimônio de 1ª ordem. Quanto maior o seu número, maior era o prestigio do seu dono que os exibia nos melhores trajes, como o descreve Sêneca.
Fico constrangido sempre diante do aparato de alguns pedagogos, estes escravos vestidos com o maior requinte e portando mais ouro do que num dia de procissão, este exército de servos resplandecentes; a casa na qual se pisa sobre tapetes preciosos, e na qual as riquezas estão disseminadas em todos os recantos e os tetos são esplendorosos e onde sempre existe esta multidão  que acompanha os patrimônios que se dissolvem” SÊNECA Da tranquilidade do ânimo, p. 08

O escravo também goza do conforto moral de sua consciência individual. A sua condição legal o exime de qualquer sanção moral nos atos que praticasse. Qualquer culpa pode ser repassada ao seu dono. Contudo este conforto - físico e moral do escravo - impunham o seu preço. Toda possibilidade legal de atribuir ao escravo os méritos do processo da criação artística sucumbem diante da heteronomia de seus sentimentos e de deliberar e decidir de sua vontade. No máximo ele é um artesão habilidoso capaz de encantar e de encher de orgulho o seu proprietário.

Fig. 04 – ESCRAVO MARCADO no ROSTO  em PORTO ALEGRE no final dos século XIX

Os mecanismos que sustentam e reproduzem esta servidão voluntária, ou forçada, estão tão bem escondidos.  Estes mecanismos estão camuflados debaixo de camadas de conforto moral e física.  Estes instrumentos de servidão desaparecem da percepção ao longo de vidas ou de gerações inteiras na medida em que as necessidades básicas da vida são satisfeitas. Estes necessidades do escravo, uma vez providas,  ainda contam com o conforto de alguém de plantão para ser o culpado de todos os atos de quem se encontra na servidão. Nestas condições o escravo está impedido intelectual, voluntária e emocionalmente de se libertar por si mesmo. Basta ameaçar, ou apenas sugerir, retirar as suas condições de segurança física e conforto moral de não ser culpado de nada.

Fig. 05 – CRIANÇAS como “ESCRAVAS de GANHO em PORTO ALEGRE no final dos século XIX. Os que tentam forçar a versão dos fatos para o seu lado poderiam argumentar que viviam melhor do que as crianças da África atual

Em consequência, qualquer um que queira praticar esta filantropia, é percebido como um ameaça ao dono, ao escravo e ao próprio sistema como um todo.  Na prática, este sistema, este escravo ou este dono deste escravo tratam de eliminar, na fase inicial deste trabalho de libertação, este libertador.  Pratica-se esta eliminação de uma forma legal sob o argumento de que ele constitui uma ameaça concreta ao sistema. Por incrível que pareça, a escravidão é sempre acompanhado por um incrível arsenal legal que legitima esta servidão. A advertência é de Aristóteles. A abolição de escravidão Brasil teria sido um ato administrativo inócuo e sem objeto se a escravidão não fosse legal. A verdade é que o hábito da escravidão continuou existindo, tanto da parte do cativo como da parte de quem o prende intelectual, intencional e emocionalmente.

Fig. 06 – Os DONOS de  ESCRAVOS de MÚLTIPLAS FACES de MUITOS FEITORES em NOVA YORK por DIEGO RIVERA em 1935. Um sistema que sob o manto da LIBERDADE seduz pelo conforto e segurança

Os múltiplos atalhos que dono do escravo, se vale para se apropria dele, são subliminares. Quem é seduzido - em direção desta heteronomia da vontade e dos sentimentos - percebe apenas vantagens que lhe parecem naturais e simplificações. Nestas bem vindas simplificações, não existem apresentações de contratos em relação às ações do escravo antes, durante e após elas. A heteronomia da vontade e dos sentimentos é escamoteada em mecanismos que possibilitam ao dono a posse legal de todos os lucros de todas as ações do escravo antes, durante e após elas. As perdas são socializadas.

Fig. 07 – O noivo das  Núpcias Aldobrandinas - detalhe da pintura mural da Roma Antiga. O sistema da nação romana zelava e controlava o contingente humano que constituiu o núcleo crítico do poder, da economia e da política. A religião de Estado realizava cerimônias aos deuses da fertilidade. Os admitidos - a estas cerimônias de iniciação - eram os selecionados e legitimados para a procriação de filhos que seriam aceitos como os legítimos herdeiros na sociedade romana, que reforçavam e habilitados a dar a continuidade ao contrato social da nação. Diante deste conteúdo explicam-se as violentas reações romanas contra os que não se submetiam a estas cerimônias.


A liberdade individual, ou mesmo coletiva, sempre assusta. Quem está preparado - para uma interação saudável – percebe logo os desafios e os altos preços a pagar diante a liberdade das vontades e dos sentimentos individuais e coletivos. No seu contraponto é estonteante perceber como no Brasil o regime da escravidão legal passou em marcha batida ao longo de quatro séculos e deixou estragos irreparáveis. Nestes estragos está muito longe de ser erradicada a escravidão física e subliminar, mesmo no século XXI. As suas práticas mais cruéis visíveis foram sublimadas em mecanismos mais devastadores e invisíveis Os seus prejuízos monumentais e continuados estão em toda parte e em especial no descendente do dono do escravo. Este descendente, físico ou mental, continua a cultivar o hábito subliminar da dependência do trabalho e de serviços do outro.  Assim os mecanismos de servidão continuam vivos e ativos na mentalidade de quem usufruiu esta heteronomia e impedem qualquer atividade criativa e inovadora.

Fig. 08 –   As OSCILAÇÕES e EXPLOSÕES de EUFORIA e de FÚRIA  do POVO são pontuais e escondem os mecanismos da manipulação da massas e desviam do trabalho continuado. Nas culturas mediterrâneas estas explosões foram usadas como catarse intencional e comandados pela propaganda da fé e por meio do barroco e continuado pelo carnaval, futebol e mega festivais dos quais  aquele de Woodstock foi também uma incursão e ruptura na cultura nórdica. O envolvimento e os estímulos aos cinco sentidos humanos nestas explosões são totais arrasando sentimentos, vontade e direitos. Contudo deixam intacto e encobrem o poder político, econômico e social que as controla e no fim quando esterilizadas de qualquer subversão, as incorpora ao sistema.

  
Esta heteronomia impede qualquer atividade criativa e inovadora. Explica, na arte brasileira, as poucas e extremamente irrelevantes contribuições para as civilizações mundiais. Estas, com todas as razões, só percebem no Brasil movimentos atrelados e subsidiários de outras aculturas que tiveram mais condições ou que correram mais riscos no caminho da afirmação da sua autonomia artística. Raríssimas são as manifestações artísticas brasileiras que outras culturas adotam como complementos de algo que lhes falta como uma necessidade material ou imaterial. Se as manifestações brasileiras, são adotadas em culturas alheias, isto acontece por tempo limitado. Não passam de manifestações exibidas como modas passageiras, ou como curiosidade ou ainda como exotismo pontual sem deixar resíduo fértil e apto a se reproduzir em meio de uma cultura ou uma civilização alheia.

Fig. 09 – A EXPLOSÃO da FÚRIA  de um POVO contra um sistema econômico que a opção pela UNIÃO EUROPÉIA em crise devido às imposições econômicas de uma moeda única.  (ATENAS - GLOBO 20.10.2011)

De outra parte, se Maquiavel insistiu de que o povo esquece mais facilmente as maldades do que as bondades. Porém estas também são esquecidas, também, em curtíssimo prazo. Basta verificar o que aconteceu ao longo do regime de Muammar Abu Minyar AL-Gaddafi (1942-2011) no qual o povo líbio nunca foi tão aquinhoado por tantos benefícios. Contudo, na hora defender estas conquistas sociais, este líder foi abandonado e aniquilado ao pó pelos seus oponentes.

Como toda a escolha representa uma perda, assim a escolha pela mudança representa a perda s do conforto moral, psicológico e físico da situação anterior. Os mecanismo da liberdade, descritos por Lauro de Oliveira Lima, nas pistas deixadas por Jean Piaget (1896-1980) e por Michel Foucault(1926-1984), possuem o seu preço a pagar e  perdas significativas para a criatura humana natural. Criatura que aspira, de forma continuada,  a se desvencilhar de todos os laços que contrariam à entropia natural e o retorno continuado á lógica da Natureza dada

No entanto, a queda e/ou o retorno para a Natureza dada representam a renúncia a tudo o que é novo e a potencialidade de lhe acrescentar algo de positivo e diferente e especificamente humano. Contudo a cultura se encarrega de gritar: “meu filho não faça Artes” e nada acontece e nenhuma mudança real está a cominho.

Percebe-se a liberdade como um acréscimo de algo ao dado pela Natureza e distinto do patrimônio genético humano. Se de um lado a Cultura e a Educação possui a sua identidade na preservação das conquistas humanas positivas e das quais esta humanidade se reconhece e do qual se orgulha. Cabe à Arte prepara as circunstâncias e os meios para continuar as conquistas para acréscimo de algo ao dado pela Natureza e distinto do patrimônio genético humano. Nestas circunstâncias o exercício pleno da liberdade de criar e reproduzir aquilo que se distinguir transcender e acrescentar algo coerente com o seu tempo e local.


Fig. 10 – A FUMAÇA da BATALHA SOBE da ÁGORA GREGA  em 2011  Os gregos, como mediterrâneos,  tenderam sempre a seguir as explosões epidérmicas e pontuais da Natureza nas concepções descritas por William Worringer. Reagem às racionalizações e às abstrações que os europeus nórdicos lhes impuseram. Como mediterrâneos, sentem e expressam imediata e facilmente o “Mal Estar das Civilizações” descrito por Freud.
(imagem de ATENAS - GLOBO 20.10.2011)

Que este processo, inerente à liberdade, assusta é indubitável. Assusta devido às mudanças e as rupturas que esta liberdade exige. Nas Artes traduz-se na forma de uma imensa responsabilidade moral do artista de manter aceso e critico este processo nas palavras de Jacques Maritain. Assusta e faz gemer e berrar, como a criança que nasce, pois ela necessita abandonar o conforto e a segurança do útero materno para se desenvolver e crescer num meio hostil e desconhecido. Assusta frente aos preços a pagar para toda e qualquer escolha pessoal e coletiva a realizar, implementar e concretizar algo novo e inédito. Assusta pelo abandono necessário do conforto moral e físico adquirido no meio dos longos hábitos da escravidão física ou mental voluntária ou coercitiva. 

FONTES BIBLIOGRÁFICAS

FERRATER MORA, José – Dicionário de Filosofia – São Paulo : Loyola 2000-2011 2vol  
        ISBN 8434405008


FREUD, Sigmund.(1858-1939).O mal estar na civilização (1930). Rio de Janeiro : Imago, 1974. pp. 66-150.  (Edição standard brasileira de obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.13)

MARITAIN, Jacques (1882-1973). La responsabilité de l’artiste.  Paris : Arthème Fayard,  1961. 121p

OLIVEIRA LIMA, Lauro. Os mecanismos da liberdade: microfisilogia . São Paulo:         Polis,  S/d.  376 p.

WORRINGER,  Wilhelm (1881 - 1965).  Abstraccion y naturaleza.  1.ed. 1908.  México :  Fondo de Cultura   Econômica, 1953. 137p.



FONTES NUMÉRICAS DIGITAIS

Endereço de vídeo relativo ao sentido das narrativas bíblicas e os bancos e guerras do sec. XXI.
Veja também os diversos adendos.

SÊNECA “Da Tranquilidade do Ânimo

PRÁTICAS DEMOCRÁTICAS na ESCOLA PÙBLICA

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