Antes de ler este artigo, convém consultar:
http://profciriosimon.blogspot.com/2010/10/isto-nao-e-arte-01.html
NEM TUDO É ARTE.
Apesar da expressão recorrente de que “tudo é arte”, existem distinções a realizar e a defender.
Se “tudo é arte”, como alguns afirmam, é possível sustentar a sua própria negação, com o “nada” como arte. Sendo “tudo arte” abre-se espaço para a defesa do fazer mecânico simples, da vulgaridade, do trabalho, daquilo que se torna obsoleto, do artesanato e até do crime comum, pois eles também mereceriam o título de arte.
Fig. 01 – O IMPULSO NATURAL agride sem deixar um pensamento a não ser a expressão primária que beira ao crime contra o patrimônio material e imaterial de uma civilização. Segue a norma da pura entropia
Para algo receber o estatuto de obra de arte não basta que este algo seja raro, surpreendente e inédito. Apesar da obra de arte participar das qualidades do raro, do surpreendente e do inédito, isto não é suficiente e garantia de que seja Arte autêntica.
Nem todos os resultados do trabalho humano são capazes de manterem viva, de aumentar e de reproduzir a mentalidade que os inspirou. No entanto a obra de arte possui esta tripla competência da mentalidade humana. Contudo nem tudo aquilo que é vivo, que aumenta e que se reproduz é Arte.
Logo de uma banda que adotou o título do romantismo precoce alemão do ano de 1774
Fig. 02 – A NATUREZA da TEMPESTADE (STURM) e o IMPULSO (DRANG) pode ser um momento de ruptura com a entropia e do eterno “mesmo”. Goethe, um dos integrantes deste movimento na sua juventude, o transforma em projeto universal no seu Fausto maduro
Uma autêntica obra de arte é competente para transmitir ao seu observador o máximo no mínimo de sua forma. Uma autêntica obra de arte é competente para suportar o teste do tempo ou ser aceita como Arte por tempo indeterminado. Uma autêntica obra de arte, ultrapassa o seu autor ou a sua época, pois cria sentido e mentalidade própria que se projetam para além do espaço e tempo do seu autor. Uma autêntica obra de arte aumenta e potencializa o capital simbólico universal da espécie humana, na medida em que migra através de diversas e sucessivas gerações de observadores e se projeta na História de Longa Duração. Com esta migração através do tempo e do espaço, esta obra incorpora o repertório de todos os seus observadores atentos a ela.
Este fato acontece porque a humanidade guarda na sua memória tudo aquilo que a representa, dignifica e capta o melhor da sua época e seu lugar de sua criação. Dificilmente a humana elimina da sua memória o que lhe aconteceu sob o princípio da conquista positiva, da felicidade e da transcendência do que lhe dado pela Natureza. Contudo, ela elimina de sua lembrança, o que lhe foi doloroso, aversivo e negativo. A memória humana iria se inviabilizar com tal volume se “tudo fosse arte”, e a desorientaria definitivamente.
Jornal SPIEGEL de 01.06.2011
Fig. 03 – A BANDINHA NAZISTA ESTETIZA o CRIME do embarque para os campos de extermínio que o seu regime ocultava da vista do público.
No âmbito da indiferença e do indefinido o fazer humano resvala para a obsolescência, entropia e o consumo completo e definitivo. Neste imponderável os trabalhos não deixam índices, memória ou vestígios significativos para o seu próprio autor e muito menos para próxima geração.
Cada civilização fixa os limites das competências que lhe são significativos ou favoráveis para a sua satisfação, à sua ampliação e para sua reprodução. Da soma destas escolhas nascem padrões culturais para as quais esta humanidade busca todos meios para reproduzi-los e, se possível, aumentá-los. O continuum destas escolhas redundantes, evoluem e saturam esta cultura até o ponto de gerar e de incutir identidades coletivas, hábitos próprios e imediatamente legíveis interna e externamente.
Jornal SPIEGEL de 01.06.2011
Fig. 04 - O FINAL DO REBANHO É SEMPRE O MATADOURO Coluna de prisioneiros nas estepes russas
Diante deste continuum reforçado, aquilo que lhe é 100% original, possui 100% chance de não se comunicar no interior desta cultura. No lado oposto um repertório 0% original mergulharia no comum, no redundante e num coletivo a semelhança de um rebanho condicionado pelo treinamento. Esta redundância cava abismos e trincheiras intransponíveis frente ao original, ao único e ao inédito. Querer que “tudo seja arte” despenca neste abismo imponderável do comum, do redundante e do coletivo de um rebanho condicionado pelo treinamento. Aquela cultura que contorna e possui medo do inédito, do único e do raro, jamais terá uma Arte renovadora e subversiva desta cultura cristalizada. Uma civilização torna-se histórica quando aceita, e assegura, como central o projeto de buscar o inédito, o inquietante e de correr o risco deste estado crítico. Leonardo da Vinci abandonava qualquer projeto quando descobria que um outro poderia resolvê-lo e levar a bom termo aquilo que o estava preocupando.
Jornal SPIEGEL de 01.06.2011
Fig. 05 – A DERUBADA da ESTÁTUA de STALIN pelo EXÈRCITO NAZISTA. Esta cena será repetida, em pleno século XXI, no Iraque
A expressão “tudo é Arte” pretende, na sua essência, criar uniformidade e se agarrar desesperadamente a um “tipo” na busca de uma difícil ou impossível “totalidade” da Vida e da Arte. Diante desta “totalidade” e do “tipo único” as categorias do novo, do inédito e do único, perdem sentido, sendo liquidadas e esterilizadas por esta uniformidade e totalidade. Neste reino estéril, quando a uniformidade e a totalidade de que “tudo é arte” é admitida como verdadeira nada mais nasce de novo, cresce ou se reproduz. Rolando e repetindo-se, neste oco e neste espaço uniforme e previsível, a Vida reduz-se à Natureza bruta e corrompe-se a Arte autêntica.
No pólo oposto, por mais que certas culturas que se dobraram ao marketing e propaganda buscando estetizar estes impulsos primários, a barbárie e a anarquia pela anarquia, elas comprometem o patrimônio material e imaterial que distinguem a criatura humana de outras espécies vivas.
Fig. 06 – A NUVEM da BOMBA LANÇADA sobre NAGASAKI no dia 09 de agosto de 1945 Certamente não pode ser considerada uma obra de arte
No contraditório - deste oco e espaço uniforme e previsível - há fatos que não podem ser admitidos como Arte autêntica no âmbito da moral e da ética, simplesmente sob o argumento de que surpreendem a criatura humana. Não é possível admitir como Arte autêntica, o “11 de Setembro de 2001”, as barbáries de toda ordem e as ações praticadas sob o impulso provenientes e comandadas pela Natureza bruta e surpreendem por si mesmos ou raridade. Não é possível admitir, como Arte, os impulsos primários, a barbárie e a “anarquia-pela-anarquia”, apesar de serem universais e existirem, desde sempre, na espécie humana.
Fig. 07 – IMPÔE-SE a ESCOLHA entre a IMORTALIDADE e a ETERNIDADE na distinção que Hannah Arendt. Por mais poderosas que tivessem sido Babilônia, Atenas, Roma ou Londres ... a ruína sempre espreita para aniquilar todo projeto humano baseado apenas no FAZER.
A autêntica Arte conquista o seu poder, a sua vitalidade e o seu pleno sentido na recriação e na transformação destes impulsos primários, da barbárie e da anarquia. A Arte é um dos índices seguros, e perceptíveis pelos sentidos humanos do quanto uma determinada cultura teve êxito nesta transformação da Natureza em algo que orgulha a espécie humana universal e a local. Esta transfiguração amplia o seu próprio patrimônio simbólico e físico e como mais valia para toda a humanidade. Contudo a civilização constitui um dado aversivo para a criatura humana, acorrentada à Natureza bruta e imprevisível ou refém de uma cultura que cristaliza definitivamente os seus atos e os seus pensamentos. Assim a arte não propicia uma satisfação e alegria gaita, festiva e superficial. A sua recompensa é de uma vitória sobre a obsolescência, a entropia e o consumo completo e definitivo, no âmbito da indiferença e do indefinido.
Fig. 08 – A DESTRUIÇÂO das TORRES GÊMEAS de NOVA YORK, por MAIS ESPETACULAR que tenha sido, ela não PODE SER ACEITA como OBRA de ARTE como EQUIVOCADAMENTE aceitou o MÙSICO KARLHEINZ STOCKHAUSEN (1928-2007) esta AÇÂO.
A memória coletiva esquece - ou não quer se lembrar - de tudo que lhe acontece. Contudo a Arte é uma exceção, pois ela constitui o lado positivo, que não faz mal e dignifica esta memória coletiva. Numa visão panorâmica de uma civilização ocorre uma rigorosa seleção no meio deste positivo daquilo que é bom do qual esta memória coletiva retendo e guardando apenas as culminância daquilo que é excelente e ótimo.
Diante deste ótimo e do excelente a memória humana destina ao descarte o vulgar, o fazer mecânico e o artesanato. Frente a esta seleção - do ótimo à favor do ótimo e do excelente - também não se sustenta a tese de que “tudo é Arte” .
O papel da arte sempre foi o desafio de transformar o bom em ótimo. Para isto não se recusa em transformar o a contradição em complementaridade ou o tabu em totem. O autêntico artista é competente para transformar qualquer tema tabu do que “não é arte” e transformá-lo num totem de uma ”autêntica obra de arte”. Nesta operação ele trabalha com um projeto que passa pela sua mente e ganha um novo corpo físico. O arquiteto Le Corbusier reconhecia “nada é transmissível a não ser o pensamento” ( Le Corbusier in Boesiger, 1970, p.168).
Imagem do Geographic Magazine em 10.06.2003 -
Fig. 09 – A DESTRUIÇÂO do PATRIMÔNIO da HUMANIDADE no IRAQUE TAMBÈM NÂO PODE SER ACEITA como OBRA de ARTE
Conta-se que o atelier de Pablo Picasso era vigiado por um oficial alemão durante a ocupação nazista de Paris de 1940 até 1944. Este querendo agradar o artista perguntou-lhe quem havia criado o grande quadro da Guernica que ali estava. A resposta de Picasso foi fulminante:
- Foram vocês. Eu só pintei !
Fig. 10 – PABLO PICASSO - A GUERNICA - 1937 - 350 cm X 782 cm
Clique sobre a imagem para ampliá-la
A transformação do horror da aniquilação da pequena cidade de Guernica, em uma grande obra de arte, mostra esta competência do artista em transformar o tabu em totem. Nesta transformação Picasso estava no caminho de Goya na Pintura, de Cervantes na Literatura ou de um Molière no Teatro e tantos outros. Todos eles foram competentes para criar grandes obras de arte a partir de um tema, mesmo amargo, horrendo e vulgar, ou, até, na ausência de um tema específico e legível. Em compensação todos estes artistas criadores, eram portadores de um projeto civilizatório, um pensamento que sobreviveu ao seu trabalho e que se projetou na sua obra e, desta, para toda humanidade.
FONTES:
ARENDT, Hannah (1907-1975). Condition de l’homme moderne. Londres : Calmann-Lévy, 1983.
Karlheinz STOCKHAUSEN (1928-2007)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Karlheinz_Stockhausen
Le Corbusier
BOESIGER, WillyLe Corbusier Les Derniers œuvres Zurich : Artemis, œuvres complètes 1970, v.8, 208 p
GUERNICA- PICASSO e NAZISTAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário