Província de Missiones – Argentina : Missão de San Ignácio Mini – 1632 - Patrimônio Mundial da UNESCO em 1984, cantaria detalhe das ruínas. Foto : EDELWEIS
Na fronteira oeste do atual Rio Grande do Sul constituiu-se, nos séculos XVII e XVIII, uma parte de um vasto laboratório de uma experiência que buscou conectar mundo empírico da percepção e a Emoção humana com um projeto que privilegiava os sentidos humanos. As ruínas desta experiência são testemunhas mudas e que anteciparam a visão das ruínas atuais da era industrial e da informática. Ruínas que mostram, como toda crueza a obsolescência, cada vez mais acelerada, do mundo da fábrica. Ruínas que prefiguram a entropia a que estão sujeitos os apelos aos sentidos humanos dos recursos mediáticos possíveis com a eletrônica e que transformam os lugares, onde ocorrem, em estacionamento provisório de eventos.
Contemplando o cenário contemporâneo não existe nada tão atual e eficiente do que a conexão entre as obras de arte e os sentidos humanos. As Missões jesuíticas foram uma amostra acabada desta conexão. O cultivo da Emoção imediata, proveniente dos sentidos humanos, deixa de lado a primazia da Razão e comanda a nossa civilização ocidental. Os seus templos são os ‘shopping center’s’, estádios esportivos e lugares de celebrações coletivas.
Os campos da comunicação, da propagando, do marketing e da economia, proveniente da indústria cultural, conhecem este caminho que constrói o mundo empírico da percepção humana.
Nas ruínas das Missões é possível vislumbrar a antecipação da idéia da franquia, em cima de um produto testado e o deslocamento de sua produção para a periferia dos centros de decisão.
Departamento de Itapúa - Paraguai: Missão de La Santíssima Trindad de Paraná - 1703 - Patrimônio Mundial da UNESCO em 1993, cantaria detalhe das ruínas Foto : EDELWEIS
Se a ruína deprime o ser humano, do outro lado, o que sobrou das Missões, demonstra que a criatura humana torna-se histórica na medida dos seus projetos. Esta historicidade é reforçada pela concepção de Le Corbusier[1] (in Boesiger, 1970, p.168) de que “nada é transmissível a não ser o pensamento”.
Para entender a eficácia universal na cultura humana, deste projeto, é necessário ler os Exercícios Espirituais escritos pelo Fundador da ordem dos Jesuítas. Os sentidos humanos ganham a centralidade e deles depende a eficácia do projeto. A leitura de um trecho deste texto
“QUINTA CONTEMPLAÇÃO
121 – Será aplicar os cinco sentidos sobre a primeira e segunda contemplação. Depois da oração preparatória e dos três preâmbulos, aproveita passar aos cinco sentidos da imaginação pela primeira e segunda contemplação, da maneira seguinte:
122 – Primeiro ponto é ver as pessoas, com vista imaginativa, meditando e contemplando em particular as suas circunstâncias, e tirando algum proveito desta vista.
123 - Segundo ponto: ouvir, com o ouvido, o que falam ou podem falar, e, refletindo em si mesmo, tirar disso algum proveito.
124 – Terceiro ponto: aspirar e saborear, com o olfato e com o gosto, a infinita suavidade e doçura da divindade, da alma e das suas virtudes e de tudo, conforme a pessoa que se contempla. Refletir em si mesmo e tirar proveito disso.
125 – Quarto ponto: tocar, com o tato, por exemplo, abraçar e beijar os lugares que essas pessoas pisam e onde sentam; sempre procurando tirar proveito disso”
Inácio de LOYOLA (1491-1556) EXERCÌCIOS ESPIRITUAIS[2](1ª impressão em 1548)
Na percepção do indígena guarani o jesuíta, portador deste projeto, foi recebido por outras razões iniciais. Foi visto como salvação no trágico cenário que se formou no confronto entre duas letais presenças concretas dos “comanderos” espanhóis e dos “bandeirantes” lusos. Os caciques e suas tribos adotaram o jesuíta como a sua única saída viável, para escapar com vida. Com o passar do tempo, e pela propaganda e marketing, aderiram ao projeto dos cenários dos quais o inaciano era portador. O inaciano era tributário, por sua vez, da Contra Reforma, das teses do Concílio de Trento, da Propaganda da Fé e do Maneirismo. Maneirismo ao longo do qual Galileu Galilei (1564-1642) reforçou, com a suas descobertas, a concepção de que “o ser humano não era mais a medida de todas as coisas e nem a Terra o centro do Universo” como ainda acreditava o Renascimento italiano mais ortodoxo.
[1] BOESIGER, Willy . Le Corbusier Les Derniers œuvres Zurich : Artemis, œuvres complètes 1970, , v.8, 208 p.
. www.memorial.rs.gov.br/cadernos/missoes.pdf
O jesuíta vinha de extrações de camadas populares européias com poucos recursos conceituais, patrimoniais próprios e individualmente preso, à uma guilda medieval européia, pelos seus juramentos, votos e contratos. Com esta parca autonomia pessoal era incapaz de exercer uma crítica isolada à ’propaganda da fé‘ e flexibilidade para fazer frente a uma cultura construída na dialética da `culpa e do perdão´. Entre os jesuítas há necessidade de distinguir o luso, do espanhol e o tirolês. O jesuíta luso dedicou-se às escolas, soube afirmar-se através do formalismo jurídico apreendido em Coimbra e atuou mais na Colônia brasileira. O jesuíta espanhol cultivou os hábitos dos nobres hereditários da sua terra, ao exemplo do fundador da ordem e de administradores inteiramente devotados ao Rei e a Espanha. O técnico e o obreiro era o tirolês (austríaco e bávaro). Quanto à disciplina formavam um exército de ‘Soldados da Companhia de Jesus’ no qual todas essas tendências foram unidas em rígidas hierarquias e normas impessoais. Quanto ao trabalho o jesuíta integrava-se a uma macro guilda medieval onde todos trabalhavam desinteressadamente para a maior glória de Deus. O índio acabou sendo a base desta guilda e nodalmente presa ao centro das decisões através dos seus próprios caciques cooptados pelo jesuíta[1].
O jesuíta exercia a função de sacerdote e de burocrata. Não atuava com xamã, ou como um profeta competente para transformar a partir das vivências concretas do meio indígena. Como sacerdote ele priorizava a administração formal da religião e comportou-se como burocrata até o último momento, sem capacidade pessoal de discutir as razões de sua expulsão do Rio Grande do Sul. Como soldado obedecia cegamente como um zumbi redivivo e sem vontade própria. Esta condição vedava-lhe o raciocínio pessoal a empatia humana de quem deixava atrás de si. A ascensão do jesuíta às funções de mando e de hegemonia cultural, entre os índios, com o poder de uma ação pedagógica institucionalizada, levou esse homem para um exercício burocrático e formal da autoridade que de fato não era dele, mas que permitia somente limitadas formas de interação humana com a base.
[1] - - Langer escreveu que “ a instância política de maior expressão na sociedade tribal, o `cacicazo´, teve as suas antigas prerrogativas respeitadas pelos jesuítas “ Ver também Meyer, 1960
MUSEU JÚLIO de CASTILHOS Porto Alegre - RS.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_J%C3%BAlio_de_Castilhos
Depois de 1756[1], quando o jesuíta foi extirpado do comando, o índio missioneiro não teve condições de continuar o processo civilização. A destruição dos valores indígenas possui inúmeras vertentes e argumentos que impulsionaram o seu silenciamento. O índio não teve, ao longo do período missioneiro, menor condição de acreditar em si mesmo. O arcabouço do poder das Missões não havia entrado em interação humana com ele e nem repassado o efetivo núcleo do poder. Os índios acabaram incorporando-se à cultura européia filtrada, que o soldado da Companhia de Jesus lhe impunha como preço da sua salvação. A cultura, imposta ao guarani, acabou se ritualizando e formalizando. A capacidade imitativa e a natural curiosidade humana, fizeram com que o índio sul-rio-grandense acabasse se perdendo no oco da Contra-Reforma Inaciana que primava pela propaganda e publicidade dirigida aos sentidos humanos, e não a lógica, a razão e a autonomia. As Artes Visuais tinham um papel preponderante nesta ‘propaganda da fé’. O indígena transformou-se num típico artesão[2] de uma guilda medieval sob a orientação jesuíticas de fala espanhola. A sua autonomia artística é duplamente limitada pela sua posição de base dentro dessa guilda, na qual é um eterno aprendiz, e do outro um objeto de ideológica-proselitista da Contra-Reforma Inaciana, que temia o seu retorno no mundo mágico.
Nessas condições a ruína do projeto civilizatório inaciano em solo do atual estado do Rio Grande do Sul era inevitável.
A queima da etapa das Missões Jesuíticas no Rio Grande do Sul é exemplar para evidenciar como o projeto político e o projeto estético andam intimamente associados e interagem em profundidade, mesmo que essa relação não seja percebida e elaborada pelos seus agentes.
[1] GOLIN, Tau. A Guerra Guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul. (1750-1761). Passo Fundo : PUF e Porto Alegre : UFRGS, 1998. 624 p.
[2] - TREVISAN, Armindo. A escultura dos Sete Povos. Porto Alegre : Movimento, 1978, 112 p
Danúbio Gonçalves FACHADA IGREJA do TÚMULO do Pe REUS-- São Leopoldo - RS.
MOREIRA , Altamir A Morte e o Além . Porto Alegre : programa de Doutoramento em Artes Visuais- Instituto de Artes – UFRGS março de 2006 – alt2mir@yahoo,com.br http://althamir.googlepages.com/artes
A imagem das obras de arte das Missões Jesuíticas[1] não foge de uma posição crítica proveniente das suas desproporções e rusticidade, por mais especular que seja. A imagem isolada de um anjo ilustra bem estas desproporções e rusticidade, apesar da sua cor que ostenta. Esta desproporção possui sentido didático e expressivo para o seu observador do qual não se conhece nenhuma crítica do que recebia.
Na erudição dos inacianos, aprendidos na melhores escolas de sua época, percebem-se nas suas obras os padrões da escultura européia que mergulha as suas raízes na escultura gótica e soma elementos que chegam ao maneirismo como é o caso de José Brasanelli. Damasceno[2] escreveu (1971, pp. 13-15) em relação a este artista:
José Brasanelli nasceu em Milão a 06 de janeiro de 1659 e faleceu a 17 de agosto de 1728, aos sessenta e nove anos, no Povo de Candelária, tal como João Batista Primoli.
Antes de ingressar na Companhia de Jesus, tendo estudado com os melhores e mais afamados arquitetos e escultores romanos, já se tornara conhecido e reputado.
Em 1696, com a idade de trinta e sete anos, portanto, encontra-se no Povo de São Borja, cujas construções ele projeta, orienta e administra, ali revelando extraordinária capacidade de trabalho.’ O incomparável Ir. Brasanelli – escreve Aurélio Porto em sua História das Missões Orientais – se desdobra em todos os setores de sua arte, construindo o templo, erguendo o Povo pelo risco que traçara, abrindo em talha os magníficos altares e adornado-os de estátuas formosíssimas, pois era notável escultor, e transmitindo a sua arte a índios que mais tarde se notabilizaram’.
Brasanelli serviu a diversas reduções. Mas principalmente ao núcleo missioneiro a que aludiu Aurélio Porto, ou seja, a de São Borja, Brasanelli daria o melhor de seus esforços fazendo-se admirara tanto quanto é certo que, na árdua e complexa empreitadas a que se devotou, duas circunstâncias poderosas seriam-lhe francamente adversas – A escassez e mesmo a falta de muitos materiais indispensáveis à obra e a já conhecida incapacidade dos nativos para qualquer tipo de atividade continuada.
A despeito de todos os obstáculos, Brasanelli cumpriu exemplarmente a tarefa que lhe foi confiada. E no desempenho dela se empregou fundo, levando a bom termo uma obra de porte notável. [..] Ms há de ser, sobretudo, na edificação e ornamentação da igreja que o artista se imporá, revelando de modo cabal, nos menores detalhes da obra, suas qualidades singulares. [..] A obra é digna de maior apreço, quer em seus aspectos arquitetônicos, quer no que toca a peças de talha e escultura que a decoram e enriquecem e das quais ainda existem exemplares de indiscutível valor artístico, como, além das estátuas, alguns retábulos, uma pia batismal trabalhada em pedra e medindo cerca de um metro e meio de altura e diversas imagens de santos. De um grande quadro aóleo, pintado por Brasanelli, figurando o padroeiro da Redução, bem como dos painéis da cúpula da igreja, há apenas notícias”
A academia e a erudição não fizeram mal a este jesuíta e nem o colocaram em conflito com a sua fé. Ao contrario, do alto de sua formação erudita pode contemplar o panorama da mesopotâmia formada pelos rios que deságuam no Rio da Prata e descer a planície com projetos consistes e coerentes com o meio físico e cultural. Isto incluía a desproporção intencional, a cor das carnações e do panejamento. Recursos estilísticos que mostram o alto grau de sensibilidade plástica e ao mesmo tempo a sobriedade que lhe confere todo o cunho devocional. Muitos dos rostos de santos, parecem inspirados no Belo Deus mainel da catedral de Amiens, do qual possuem os traços fisiognômicos.
[2] DAMASCENO. Athos. Artes plásticas no Rio Grande do Sul (1755-1900). Porto Alegre : Globo, 1971, 520 p
Danúbio Gonçalves - São Leopoldo - RS.
MMOREIRA , Altamir A Morte e o Além . Porto Alegre : programa de Doutoramento em Artes Visuais- Instituto de Artes – UFRGS março de 2006 – alt2mir@yahoo,com.br http://althamir.googlepages.com/artes
Veja mais em
SPINELLI, Teniza, Escultura Missioneira em Museus do Rio Grande do Sul. ; Alf , 2008, 103 p.
TREVISAN, Armindo Escultura Missioneira. Porto Alegre : Movimento, 1978, 112p
Outras leituras em:
http://static.panoramio.com/photos/original/19171185.jpg
www.memorial.rs.gov.br/cadernos/missoes.pdf
http://www.margs.rs.gov.br/ndpa_sele_artemissioneira.php
http://barroco.gctec.com.br/ofjes.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_J%C3%BAlio_de_Castilhos
http://pt.wikipedia.org/wiki/Escultura_do_Brasil
O presente artigo é solidário com o MUTIRÃO de COMUNICAÇÃO AMÉRICA LATINA e CARIBE a realizar-se de 03 a 07 de fevereiro de 2010 na PUC-RS Porto Alegre –RS.
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